O insólito e o grotesco se encontram: o horror na literatura japonesa

Um mergulho profundo no gênero do terror na literatura do Japão pelo olhar da mestra e pesquisadora Cacau Ideguchi

5 minutos

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Por Cacau Ideguchi*

Se você acha que o terror japonês é feito só de fantasmas de cabelos longos e filmes com fita VHS, é hora de puxar uma cadeira e mergulhar mais fundo nesse universo cativante — e, muitas vezes, perturbador.

A literatura de horror no Japão não é apenas assustadora. Ela é, antes de tudo, sensorial. Em vez de sustos fáceis ou monstros saltando da página, o terror japonês prefere o caminho da sugestão, do desconforto que se acumula aos poucos e da sensação de que há algo errado no cômodo ao lado. Essa tradição já vem de séculos e se manifesta desde os primeiros livros escritos, passando pelos kaidan (contos populares de fantasmas) até as histórias mais contemporâneas.

Horror na literatura japonesa
One Hundred Ghost Stories (Haunted House by Hayashiya Shozo), by Utagawa Kuniyoshi, Japan, Edo period, 1800s AD, woodblock print on paper – Tokyo National Museum – Tokyo, Japan

No artigo “Os Mortos Falam: Horror e o Fantasma Moderno em O Serviço de Entrega de Cadáveres Kurosagi, de Eiji Ōtsuka”, a acadêmica Megan Negrych discorre sobre o kaidan e as produções de horror atuais: “Historicamente, os kaidan japoneses que abordam o horror e o sobrenatural foram moldados por ideias culturais e sociais relacionadas à morte e à preocupação de que os mortos inquietos pudessem trazer infortúnio aos vivos. Além do kaidan, o mangá de terror contemporâneo também se inspira na literatura japonesa moderna e na ficção popular, especificamente em um gênero conhecido como ero-guro-nansensu (absurdo grotesco erótico), que surgiu na década de 1920 como um fenômeno cultural burguês que se dedicou a explorações do desviante, do bizarro e do ridículo.”

O mestre do ero-guro-nansensu Edogawa Rampo (pseudônimo que homenageia Edgar Allan Poe) é um nome essencial para entender como o Japão refinou o horror em direção ao insólito e ao grotesco. Seus contos misturam mistério, erotismo e um toque de bizarrice que faz qualquer leitor ficar entre o fascínio e o desconforto. Essa familiaridade com o insólito está presente desde os primeiros clássicos do Japão. Em As narrativas de Genji, considerado o primeiro romance da história, escrito por Murasaki Shikibu no século XI, os fantasmas não aparecem como monstros, mas como manifestações do sofrimento e do apego. A figura de Lady Rokujo, por exemplo, é possuída por uma raiva silenciosa que transcende a morte. Sem saber, seu espírito se desprende do corpo e atormenta a nova esposa do protagonista, em cenas carregadas de poesia e angústia. O terror da narrativa não vem do susto, mas da sensação assombrosa que nos persegue.

A atração do povo japonês pelo inusitado e sobrenatural geralmente se reflete na maneira como casas, objetos e até paisagens podem carregar memórias e presenças incomuns. No cinema, por exemplo, um templo pode ser tão assombrado quanto o de Noroi (2005, dir: Kōji Shiraishi), onde rituais esquecidos liberam forças aterradoras, ou como a escola em Another (2012, dir: Takeshi Furusawa), onde os corredores ecoam com mortes inexplicáveis e uma maldição intergeracional. Um telefone abandonado pode ser muito mais que um objeto perdido, como no curta 4444444444 (1998, dir: Takashi Shimizu), que introduziu a figura de Toshio, depois imortalizada em O Grito (2000), do mesmo diretor. Esses espaços, cotidianos à primeira vista, tornam-se portais para o inexplicável — um traço marcante do horror japonês. No país, o terror não é algo que está lá fora, ele mora dentro das casas e das pessoas. E nos últimos anos esse tipo de narrativa tem ganhado cada vez mais atenção no Ocidente, com leitores de países como Estados Unidos, Reino Unido e Brasil impressionados com o modo como o horror japonês propõe uma experiência literária que é tanto estética quanto emocional. Autores como Junji Ito, Kanae Minato e Hirokatsu Kihara se tornaram febre, mostrando que o terror que vem do Japão é ao mesmo tempo profundamente local e universal.

Uketsu, autor de "Casas estranhas"

E é nesse universo de sussurros e sombras que chega Casas estranhas, livro do youtuber Uketsu, lançado no Brasil pela Intrínseca. O autor é conhecido pela internet por reunir e narrar casos verídicos de arrepiar: histórias de internautas que viveram encontros inexplicáveis em apartamentos com aluguéis baratos, mansões abandonadas no interior do país e casas com segredos enterrados sob o assoalho. No YouTube, seu canal se tornou fenômeno, e agora, em formato literário, suas histórias ganham nova dimensão.

Horror na literatura japonesa: conheça "Casas estranhas"

Em Casas estranhas, uma narrativa de suspense envolvente acompanha um jovem casal prestes a ter seu primeiro filho, que encontra a casa aparentemente perfeita em um bairro tranquilo de Tóquio. No entanto, um espaço inexplicável entre a cozinha e a sala desperta suspeitas, e, em busca de respostas, eles recorrem a um escritor fascinado por ocultismo. Juntamente com um conhecido que é especialista em arquitetura, o escritor descobre detalhes perturbadores na planta da casa: cômodos sem janelas, portas duplas e disposições incomuns. Conforme investigam, percebem que a casa esconde segredos sombrios e aterrorizantes. É uma leitura perfeita para quem gosta do tipo de terror que se infiltra aos poucos, que constrói a tensão parede por parede; o mistério vai sendo montado lentamente e, ao abrir o livro, o leitor não entra apenas em uma casa mal-assombrada: ele se muda para dentro dela, com tudo o que isso implica.

Com mais de dez anos de experiência profissional, Cacau Ideguchi* é mestra em Letras com ênfase em Cultura Japonesa (2023), tem MBA em História da Arte (2024), é especialista em Jornalismo Cultural (2014) e bacharel em Jornalismo (2011). Seu caminho acadêmico é no cinema e na história japonesa, perpassando pela literatura e artes plásticas do país.

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  • CASAS ESTRANHAS

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