Comunhão

Era verão de 2013. Dezembro abafado e preguiçoso, como de costume. O último do Ensino Médio; eu tinha então dezessete anos. O que quero contar não tem nada a ver com escola, no entanto. O que surgiu, surgiu de uma inocência profana, entre missas e túnicas na igreja local.
Conheci-o lá, enquanto compartilhávamos as tardes de domingo repetindo orações tão antigas quanto o próprio pecado. Depois, nos aproximamos nos encontros de jovens que aconteciam nas tardes dos fins de semana. Não poderia dizer com exatidão em que ponto o desejo começou, às vezes tenho a impressão de que ele estivera ali desde sempre. Talvez não o desejo por alguém em específico – por ELE – mas o desejo em sua forma mais abstrata, que encontrou n’ELE o portal necessário para atravessar a fronteira entre o imaginário e o real. De modo que hoje, ligeiramente mais maduro, e tendo provado do fogo desse mesmo desejo (se é que era o mesmo) em outros corpos, não sei dizer se o que desejei foi ele mesmo, de fato, ou se apenas usei-o para saciar uma vontade sem rosto que já existia antes dele em minha vida, apesar de um nem saber naquela época que aquele ímpeto latejando dentro de mim tinha um nome.
Não, realmente não sei. E nem me incomoda não saber. O que posso dizer é que havia muitas particularidades dele que me agradavam: a ingenuidade quase infantil, embora estivesse no auge da adolescência; o modo como demonstrava precisar de mim – eu gostava de me sentir necessário para alguém – o jeito que apoiava gentilmente um cotovelo sobre meu ombro. Mas acima de tudo, a delicadeza com a qual costumávamos entrelaçar os dedos discretamente durante as missas: de pé, encostados na parede oposta ao altar, lado a lado, com os braços cruzados e as mãos se tocando disfarçadamente. Uma afronta secreta que ficava entre nós e a onisciência divina, apenas. Mas tudo isso era inconsciente, eram nossos instintos agindo. Era o desejo arquitetando sua passagem para o plano da realidade.
Quando me dei conta, ele e eu já éramos melhores amigos (antes de descobrirmos que não era amizade o que queríamos um do outro e de nós mesmos). O tempo todo juntos, trocando cochichos, olhares e pequenos momentos de contato físico que me davam sensações até então desconhecidas. Hoje posso resumi-las muito bem: sexo. Todo e cada gesto dele comigo e vice-versa gritava isso. Algumas pessoas enxergaram antes de nós. Eu era dois anos mais velho, era comigo que falavam. “São muito chegados, não é?”, perguntavam. “Pra que tanto abraço?”, até mesmo o padre questionou certa vez.
Tentei diminuir a proximidade, muito embora não visse mal algum naquela relação. “É só uma amizade um pouco mais carinhosa”, eu dizia a mim mesmo, “o que mais poderia ser, afinal?”. Ele, porém, não permitia o afastamento. Sua mão procurava a minha na missa; se eu a negasse, se agarrava ao meu braço. Se eu fosse para longe, me seguia. Se eu pedisse que mudasse de lugar, por mais doçura que eu imprimisse em minha voz, seus olhos escuros e profundos marejavam. Eu era fraco demais por ele. Não sabia de onde vinha toda aquela fraqueza, mas lutar contra ela era impensável para mim. Desisti do afastamento e devolvi-lhe minha mão.
Ainda assim, foi só no natal daquele ano que finalmente conheci o desejo em sua forma mais genuína, concreta e implacável. Era noite de natal e ele estava em minha casa – frequentava-a muito. Assistimos alguns filmes, comemos, jogamos conversa fora até olharmos para o relógio e constatarmos que já era muito tarde para ele ir embora sozinho. Cogitei pedir a meu pai que o levasse de carro, mas ele foi mais rápido. “Posso dormir aqui?”, pediu com um ar despretensioso. Perguntei aos meus pais se haveria algum problema. Nenhum. Coloquei o colchão extra no chão, ao lado da minha cama. Apaguei todas as luzes, tranquei todas as portas e voltei para me deitar.
Ele já estava deitado no colchão no chão. Totalmente vestido, exceto pelo par de tênis encostado num canto. O quarto estava escuro, mas ainda era possível distinguir silhuetas. Deitei-me e desejei-lhe boa noite. “Estou feliz por estar aqui”, foi a resposta dele. De repente, a consciência de tê-lo ali, deitado num colchão ao meu lado naquela madrugada me encheu de uma excitação ardente. Senti uma vontade incontrolável de tocá-lo. Deitado de bruços, estendi meu braço em direção à ele, tateando no escuro. Alcancei seu rosto. Acariciei sua face macia e ele beijou as costas de minha mão.
Neste momento cada nervo, cada célula, cada átomo em mim pareceu despertar para uma verdade inegável e ridiculamente óbvia: eu o queria. E queria mais ainda que ele me quisesse.
Como se pudesse ler meus pensamentos – e talvez pudesse, de certa forma, pois me conhecia nos mínimos detalhes – ele puxou minha mão… e meu braço… e meu corpo todo. E eu deixei que me puxasse com toda aquela delicadeza que só ele tinha. Logo estávamos os dois dividindo o colchão no chão. Meu corpo sobre o dele. Quente. Sem entender ao certo o que estava acontecendo. Sem QUERER entender o que estava acontecendo. Íamos aonde o instinto nos levava. O instinto, lacaio do desejo.
Tudo se deu tão rápido, mas ao mesmo tempo tão gradualmente, como a tarde que vira noite sem que percebamos, embora os ponteiros do relógio nunca tenham parado de se mexer. Eu sentia a respiração dele contra a minha. Quente e profunda enquanto ele afundava o nariz em meu pescoço e inalava meu cheiro. Eu queria ser o ar que entrava dentro dele. Nossas mãos passeavam por nossos corpos, ainda com certa cautela: braços, ombros, costas. Não mais que isso. Subitamente, percebi que estava excitado. Tentei afastar meu quadril do dele, envergonhado. Ele não permitiu. Moveu o próprio quadril para cima, mantendo contato com o meu, e depois para baixo. E repetiu o movimento. E de novo. E de novo. E de novo. Ele estava sentindo prazer. Prazer sexual. Mais do que isso: ele estava, literalmente, usando o MEU corpo para obter prazer sexual. Esta constatação me incendiou de dentro para fora e inebriou meus sentidos. Era o momento de me entregar definitivamente ou recuar antes de ultrapassar um ponto a partir do qual não seria mais possível voltar. Cedi ao desejo. Rocei meus lábios nos dele. Devagar, sem saber o que esperar. Me inclinando na beira do precipício em busca de um vislumbre qualquer do que me esperava quando eu me jogasse. Ainda não era um beijo, no entanto.
Rocei os lábios mais uma vez, pressionando-os um pouco mais, minimamente. Ele parou de mover o quadril contra o meu e entreabriu a boca. Sua língua, tímida, passou por meu lábios. Hesitante. Invadiu minha boca com gentileza e eu permiti com deleite. O desejo vencera, enfim. Assumira o controle absoluto.
O que aconteceu depois foi uma explosão de tesão. Mais rápido do que pude perceber, estávamos nus, explorando cada centímetro de nossos corpos com a língua e os dentes. Já não sabia a diferença entre o meu cheiro e o dele; entre minha pele e a pele dele. Essa comunhão que só os verdadeiros amantes conhecem. Só aqueles que se permitem ser humanos, no sentido mais primitivo.
Na manhã seguinte, porém, uma culpa aguda e incômoda. Uma mistura de remorso e vergonha que me fez querer expulsá-lo do meu quarto, da minha casa e da minha vida. De onde veio essa repulsa? Será que ele sentiu o mesmo? Quem sabe…
Mas essa sensação torturante, se dissolveu tão rápido quanto surgira, antes mesmo que eu pudesse refletir melhor a seu respeito.
Ao fim da manhã, enquanto eu o acompanhava até sua casa, tocamos no assunto (tínhamos trocado poucas palavras até então, carregadas de indiferença, como se aquela madrugada tivesse acontecido num universo paralelo ou num sonho distante).
“Estou com vergonha”, ele disse.
“Não precisa ter”, respondi, mas também me sentia envergonhado. “Somos adolescentes, essas coisas acontecem, é normal”, por ser um pouco mais velho, eu me sentia no dever de soar mais adulto, como se soubesse bem do que estava falando. Na verdade, sabia tanto ou menos do que ele.
“Não, você não entendeu”, ele sacudiu a cabeça, “não estou com vergonha do que aconteceu”.
“Então…?”
“Estou com vergonha de dizer que quero mais.”
As palavras dele falaram por mim. Manifestaram a minha própria vontade. E sim, tivemos mais, muito mais daquilo.
Meus pais fizeram uma viajem poucos meses depois e minha mãe, preocupada por me deixar sozinho pela primeira vez, sugeriu que eu convidasse alguém para me fazer companhia em casa.
Ele passou quase um mês dormindo comigo, talvez mais, e eu poderia narrar cada uma daquelas noites com seus românticos e obscenos detalhes. Contudo, antes de meus pais voltarem de viagem, tudo já tinha acabado. Sim, acabado. Não, não houve nenhum desfecho dramático, ou brigas, ou traições, ou qualquer coisa dessas. Simplesmente acabou como tudo nessa vida se acaba. O desejo é súbito e implacável na chegada e na partida.
Se o que tivemos significou para ele o mesmo que significou para mim… nunca saberei. Eu poderia perguntar. Tenho seu número, conversamos de vez em quando, mas cada mensagem que trocamos soa distante. Somos outras pessoas. De qualquer forma, prefiro não saber o que ele pensa a respeito e manter aqueles momentos cristalizados em minha memória, vistos sob a lente intensa do meu coração. Como um segredo guardado por mim e pela onisciência divina.