A GAROTA QUE LIA

Eu tinha treze anos quando senti pela primeira vez o meu coração batendo num compasso diferente do normal. Lembro-me como se fosse hoje. Era uma manhã de princípio de ano letivo. Eu estava eufórico com a volta às aulas, pois ao menos assim eu teria algo mais para fazer, além de ficar em casa o dia todo lendo. Não é que eu não gostasse de ler, mas muito de uma mesma coisa, ainda que boa e prazerosa, acaba entediando qualquer pessoa. Sempre fui uma pessoa reservada, de poucos amigos, e na infância as coisas não eram diferentes. Logo, meu único passatempo era ler. De forma alguma eu me sentia incomodado com isso, exceto pelo fato de que na minha rua nenhum outro garoto lia, aliás, não sabia nem mesmo de adultos que liam. Logo eu não tinha com quem trocar impressões acerca dos livros que lia. Eu ia para a escola alegre com a possibilidade de pegar novos livros emprestados na biblioteca. Afinal, aqueles que habitavam a minha estante eu já os lera e relera uma meia dúzia de vezes durante as férias, e na cidade não havia onde comprar livros novos, assim, restava-me a escola como opção de novos títulos.
Quando cheguei à escola naquela manhã do primeiro dia de aula, a surpresa ao ver uma garota sentada em um dos bancos de espera que ficavam no corredor me perseguiu por todo o restante do dia, e me impediu de me concentra na aula. No caminho de volta para casa ela ainda estava nos meus pensamentos e quando cheguei a casa também. Mas desde quando pousei os olhos naquele ser angelical foi difícil olhar em outra direção e pensar em outra coisa que não naquele par de olhos castanhos que pareciam iluminar tudo ao redor; e isso aconteceu por dois motivos: o primeiro, ela era a coisa mais bonita que até então eu tinha visto nos meus doze anos de vida; o segundo, ela segurava um exemplar de “Tom Sawyer” de Mark Twain. A princípio eu não sabia quem era o autor do livro, se era o tal Tom ou o Mark, nenhum dos dois nomes estava em destaque. Ambos eram desconhecidos para mim que nunca havia ouvido falar e nem lido aqueles nomes em qualquer livro. Poderia ter admitido a minha ignorância logo de início, essa atitude teria me poupando alguns minutos de embaraço, mas quis mostrar-me entendido no assunto e quase me dei mal.
Sentei-me num banco de frente para ela, assim tinha um ângulo mais favorável e poderia observá-la melhor enquanto ela continuava a sua leitura, fingindo não notar a minha presença ali. Ela usava ósculos, o que achei um encanto a mais, tinha os cabelos negros lisos e brilhantes como seda contrastando com a sua pele lívida e estavam amarrados num rabo de cavalo que descia por um dos ombros. Ela estava encostada à parede, as pernas cruzadas servindo de apoio ao livro enquanto lia. Lembro-me de ter pensado que naquela pose ela parecia uma das nossas professoras, e isso me deixou intimidado de tal forma que me limitei a observá-la com forçada discrição.
Além de mais dois garotos que transitavam pelos corredores de um lado para o outro, entrando de sala em sala e batendo as portas, nós éramos os primeiros alunos a chegar, e ainda levaria uma meia hora a quarenta minutos até a matilha de alunos irromper pelos portões e o sinal de entrada tocar. Retirei da mochila o meu “Capitães da Areia”, que já estava bastante surrado devido as releituras, mas que eu sempre trazia comigo para os momentos de ócio durante o recreio, ou quando a professora se atrasava e tínhamos que esperar por algum tempo antes de sermos liberados de volta para casa.
Foi então que, com a minha visão periférica, percebi um movimento do outro lado. Ela ergueu a cabeça e pôs a me olhar, e senti que o meu coração disparou no peito como se acionado por algum dispositivo que era aqueles olhos. E foi a minha vez de fingir-me indiferente ao seu olhar e à sua presença, como se isso fosse algo possível. Mas isso não durou muito tempo, não resisti àqueles olhos castanhos fitando-me com interesse, ainda que o real interesse fosse o livro que eu tinha em mãos (isso eu fiquei sabendo depois, quando ela me confessou com um ar de superioridade e uma expressão indecifrável nos olhos). Ela sorriu para mim de um jeito que nenhuma outra garota havia sorrido antes, ou eu não prestava muito atenção nas garotas com quem convivia na escola; fico com a primeira opção. Embaraçado com aquele sorriso, respondi com um sorriso tímido e sem saber ao certo como devia agir. Eu nunca tinha estado na presença de uma garota antes cuja mera presença me intimidasse apenas por sua beleza, seu olhar ou seu sorriso.
“Você gosta?”, ela disse.
“Hã?” – hesitei sem saber ao que ela estava se referindo.
“Do Jorge…”, ela continuou. “O livro… Você gosta de Jorge Amado?”
“Ah tá… Sim, sim… Gosto muito.”
“Eu já li Gabriela.”
“Eu já li Mark Twain”. Não sei porque menti. Talvez pelo nervosismo, pela necessidade de manter a conversa e ter um pouco mais da sua atenção, ou pelos dois motivos. O certo é que não foi uma boa atitude e percebi isso logo em seguida.
“Qual?”, ela quis saber.
“Como?”, eu não tinha entendido a pergunta.
“Qual você leu?”, senti-me encurralado.
“Mark Twain…”, respondi sem saber a gafe que estava cometendo. E logo ela entendeu, mas a sua educação não permitiu ser deselegante com o fato.
“Mark Twain é o autor…”, observou ela mostrando-me o volume e indicando o nome.
“É… o autor.”, assenti encabulado por ter sido pego numa mentira.
“Meu nome é Soraya”, ela disse mudando de assunto ao perceber o meu embaraço. “Meus pais e os amigos me chamam de Sol… Se preferir pode me chamar de Sol também, ou Soraya, tanto faz.”
“O meu é Raimundo…”, respondi dando graças a Deus por ela ter mudado de assunto, mas ainda um tanto constrangido pela gafe. “Meus amigos me chamam de Rai…”
“Legal! Acho que chegamos cedo, Rai…”
“É, parece que sim…” observei ao redor e constatando os corredores vazios e silenciosos contrastando com o ‘tlec-tlec’ das máquinas de escrever que vinha da diretoria.
“Você já estudava aqui?”, ela continuou.
“Desde a primeira série…”
“Fui transferida. Esse é meu primeiro ano aqui.”
“Qual a série?”
“Quinta…”
“Legal! Eu também vou fazer a quinta.” Respondi eufórico ao vislumbra a possibilidade de estudarmos na mesma sala. Possibilidade que mais tarde se tornou real.
“Espero gostar daqui…”
“Vai gostar”, afirmei torcendo para que fosse verdade. “É uma boa escola e tem bons professores.”
“Ao menos a recepção já gostei.”
Em seguida ela deu um risinho maroto enquanto fechava o livro e o colocava sobre a mochila, e isso me deixou ainda mais encabulado, quer dizer o riso, os movimentos delicados e a expressão no seu rosto. E desde então eu sabia que se passariam décadas e eu nunca mais esqueceria aquele rosto, aqueles olhos, aquele sorriso e aquela voz. Nunca mais.