Temporada de caça aos passos

Eu sempre me apaixono à primeira vista. Ainda consigo ver claramente, mesmo de olhos abertos, a primeira vez que o vi, aquele perfil afiado como o gume de uma lâmina cortando a luz florescente de uma lampada atrás de sua cabeça, seu nariz fazia como uma espada e dividia o dia falso da eletricidade da noite em que seu rosto estava mergulhado. Parece muita poesia, mas foi exatamente isso o que pensei quando o vi: o perfil de faca, o dia e a noite, um corte de luz que me fez recordar imediatamente de uma passagem de Virginia Woolf em “Rumo ao Farol”. O corte entre o ordinário do presente e absolutamente tudo o que veio depois. Um cordão umbilical rompido.
Não faz nem uma hora que terminei de ler o livro, tudo o que eu digo é muito real e eu já nem sei em que parte do tempo eu estou agora para ser sincero. Eu fiquei chorando como uma criança e senti o amargor que os adultos gostam de cultivar nas recordações adolescentes dos amores de verão. Mesmo que esse não tenha sido um amor de verão, mas de alguns verões e sobretudo inverno lá na cidade mais ao sul do Brasil, naquela praia que não tinha nada a não ser vento e uma cabine de madeira e que você fotografou, na qual entramos e escrevemos nossos nomes e embaixo deles “Temporada de caça aos passos, 2013″ (este seria o título do livro que eu supostamente escreveria sobre nossas viagens), e a gente sabia que era um lugar que provavelmente não voltaríamos outra vez, mesmo que na hora quisséssemos acreditar nisso, e talvez eu já soubesse naquele momento que desse momento em diante só era possível uma vertiginosa queda, e talvez eu já te amasse como um passarinho morto: sem propósito, como se amasse por pena e hábito de amar, talvez eu já estivesse sabendo que geralmente o amor nunca é suficiente. E pensando nisso tudo, se eu decidisse te chamar pelo meu nome ou pelo seu, não faria diferença, exceto pelo chiado que o ”c” faz antes do ”t”, mas que ninguém chega a pronunciar no português brasileiro. Eu estaria fadado pensar em você todas as vezes que eu pensasse no meu nome? Mas me chamam de tantos nomes que disso eu posso fugir às vezes, e eu sei que muito provavelmente você nunca usava meu nome, só o apelido, então, agora eu sei, que eu estava à salvo de me transformar em você e de como isso era perigoso.
Antes das cinqueta primeiras páginas, eu me convenci de que iria entrar em contato com ele novamente, depois de tanto tempo em hiato. Por e-mail, era a única forma e a mais segura. Nossas vidas não poderiam estar mais diferentes. Agora ele tem um filho e eu um diploma universitário. Tive que engolir o rancor que eu cuidadosamente cultivei por tantos anos, eu não queria mais carregar essa tristeza por ai e um dia na semana passada, sem aviso prévio, eu a chorei inteira para fora do meu corpo. E está tudo bem. Abri as janelas da minha casa e o sol entrou, dentro de mim ouvi alguma coisa se encaixar em outra, nem sei dizer muito bem o que é. Depois disso, até me disseram que estou ficando mais moço e ando durmindo tranquilamente a noite. Já me dou por satisfeito. Posso dizer que quase somos amigos de novo.