Quem nunca terminou um livro com vários questionamentos sobre como o autor criou aquele universo ou as razões que levaram ao desfecho da história? Pensando nisso, John Green se uniu à escritora e amiga Celeste Ng para criar um clube de leitura sobre seus últimos lançamentos, Tartarugas até lá embaixo, de John, e Pequenos incêndios por toda parte, de Celeste.
O Q&A foi elaborado com perguntas e respostas que eles fizeram um ao outro, inspirados pelas leituras das respectivas obras. Nele, John Green conta como escrever sobre Aza Holmes mudou sua forma de enxergar o próprio transtorno mental, sua gratidão a fanfics e outros universos expandidos envolvendo seus personagens e a necessidade de tratar as questões de adolescentes e adultos com a mesma relevância. Celeste, por sua vez, explica a origem do título de seu livro e explora a importância de falar sobre maternidade. Confira as perguntas e respostas completas abaixo:
CELESTE PARA JOHN
Pergunta 1:
Celeste: Você já falou a respeito de sua luta contra a ansiedade e os pensamentos obsessivos, e no livro temos um panorama da mente de Aza enquanto ela enfrenta problemas semelhantes. Escrever a história da Aza mudou a forma como você encara sua saúde mental? O que você espera que os leitores preocupados com questões relativas à saúde mental — deles mesmos ou de seus amigos — levem deste livro?
John: Escrever o livro certamente não me curou, mas mudou a maneira como eu me vejo e vejo meu transtorno mental. Enquanto escrevia a história, percebi que sentia muita compaixão pela Aza. Ela não queria que esses pensamentos desordenados consumissem tanto a sua vida, ou que se alastrassem tão impiedosamente pela vida das pessoas que ela amava. Eu pude ser generoso com ela de um jeito que tive dificuldade de ser comigo mesmo, e essa experiência tem me ajudado. Eu quis escrever Tartarugas até lá embaixo por motivos bastante pessoais — queria desesperadamente encontrar alguma forma ou descrição objetiva para essa experiência imensamente profunda e abstrata dos pensamentos obsessivos, na esperança de que os leitores que vivem com isso se sentissem menos sozinhos, e também que aqueles que amam alguém com transtornos mentais tivessem um vislumbre de como essa dor psíquica pode ser difícil, assustadora e excruciante. É tão, tão difícil falar qualquer coisa sobre dor, seja ela física ou psíquica. Elaine Scarry escreveu em seu brilhante livro The Body in Pain: “Sentir dor é ter certeza; ouvir sobre a dor do outro é ter dúvida.” Acho que isso acontece em parte porque não existe uma linguagem para explicar as experiências de dor, e eu queria tentar achar uma — além de também conseguir descrever minha própria dor para aqueles que amo.
Pergunta 2:
Celeste: A fanfic da Daisy adiciona outra camada maravilhosa ao romance — é um reconhecimento ao universo vibrante de fanfics que existe em nosso mundo, mas é claro que as histórias refletem também o mundo de Aza e Daisy. Você já escreveu (ou escreve) fanfics? Você lê as fanfics que escrevem sobre seus personagens? Por quê?
John: Eu já escrevi fanfics, mas não faço isso há um bom tempo, e eu também não era muito bom! Às vezes leio as fanfics sobre meus personagens. O fato de as pessoas se importarem tanto com os meus personagens a ponto de criarem histórias além das que escrevi sempre me deixa imensamente agradecido. Fico muito grato de saber que os personagens ainda estão vivos na imaginação dos outros e que os mundos em que vivem se expandiram para muito além de mim.
Pergunta 3:
Celeste: Este é um livro sobre adolescentes tentando fazer a coisa certa, lidar com perdas, planejar o futuro, entender o amor e administrar suas emoções.
Os adultos ajudam, mas são os adolescentes que constroem suas próprias trajetórias. Quando li, eu não consegui deixar de pensar nos recentes protestos nos Estados Unidos liderados por jovens e de sentir que, sabe, os garotos estão se saindo bem. O que você gostaria de dizer aos adultos sobre os adolescentes, e vice-versa?
John: Sim, os jovens estão se saindo bem. De diversas formas, eles estão nos liderando, e eu estou pronto e disposto a segui-los. Talvez seja difícil para os adultos perceberem isso — acho que os adolescentes são sofisticados intelectualmente e estão se envolvendo com assuntos importantes, mas muitas vezes os interpretamos mal por causa da forma como se expressam (ou não!). Na verdade, essa é uma das coisas que amo em Pequenos incêndios por toda parte: o livro analisa com a mesma seriedade os problemas dos adolescentes e os dos adultos, enquanto explora os desafios de escutar e ser escutado em meio a impasses geracionais.
JOHN PARA CELESTE
Pergunta 1:
John: Sou fascinado pela maneira como escritores criam frases memoráveis, e estou encantado com a fala da Lexie que dá nome ao livro: “Os bombeiros disseram que havia pequenos incêndios por toda parte. Vários pontos de origem. Possível uso de combustível. Não foi um acidente.” Isso parece refletir diversos aspectos do romance — os pequenos incêndios que existem na vida de todos, a forma como combustíveis como gênero, raça e classe afetam esses incêndios, e por aí vai. Me pergunto se você se lembra do contexto em que escreveu esse trecho e se o que veio primeiro foi a história ou a fala.
Celeste: A verdade é que fala veio primeiro! A primeira parte que escrevi do romance foi o capítulo um — o que é incomum, porque em geral não trabalho na ordem. Na verdade, o livro ficou sem título durante a maior parte do processo de escrita, mas, quando estava tudo certo para mandá-lo para a minha editora, eu tive que inventar alguma coisa. Seguindo um conselho da minha agente, reli tudo e escrevi as frases que poderiam ser usadas como título. Acho que cheguei a encher quatro páginas. A maioria das ideias era horrível, mas sempre voltávamos a uma: Pequenos incêndios por toda parte. Quanto mais eu pensava a respeito, mais gostava dela como título do livro. Faz referência ao incêndio de verdade que abre o romance, claro, mas também ressalta a ideia de que em geral não existe apenas uma única causa para um desastre; normalmente há várias questões latentes que enfim levam a um ponto crítico. Agora não consigo imaginar o livro com outro título.
Pergunta 2:
John: Eu amei a forma como você explorou a maternidade no livro. Sobretudo nas passagens que envolvem a May Ling/Mirabelle, mas, na verdade, durante a leitura, eu ficava pensando em uma frase que minha mãe me disse quando meu filho nasceu: “Pai é algo que você é, mas também é algo que você se torna com o passar do tempo.” Foram raras as vezes em que li sobre os esplendores e os horrores de se ter filhos de uma forma tão cheia de empatia e nuances. Por que foi importante para você escrever sobre mães e maternidade? E como você responderia à maior questão proposta no livro: “O que faz de alguém uma mãe? Apenas a biologia ou o amor?”
Celeste: Ah, eu amei essa afirmação da sua mãe. Acho que é muito verdadeira. Você se torna pai quando tem um filho, mas também é um processo: acho que estou constantemente aprendendo como ser mãe e em especial como ser mãe da criança que o meu filho é. Sempre me interessei pelas relações entre pais e filhos, porque são as primeiras que temos e são tão formadoras, quer estejamos tentando ser como nossos pais, ativamente nos esforçando para não acabarmos como eles ou nos moldando frente à sua ausência. Tornou-se um assunto ainda mais fascinante para mim porque estou neste ponto intermediário: agora sou mãe e filha, então olho para relações entre pais e filhos sob essas duas perspectivas. Essa visão dupla me fez compreender melhor as decisões que minha mãe tomou quando eu era mais nova, e tem sido uma grande influência na maneira como tento construir minha relação com meu filho. Quanto à grande pergunta: laços biológicos definitivamente têm importância — um exemplo pequeno é a forma como meu filho costuma unir as sobrancelhas do mesmo jeito que minha mãe faz, e sei que eu também faço essa mesma expressão. Os vínculos entre nós são muito claros nisso e em muitos outros aspectos, físicos e comportamentais. Mesmo que eu nunca tivesse conhecido a minha mãe, muito de mim seria influenciado por ela simplesmente por causa da genética. Mas é meio o que sua mãe disse: maternidade também é um ato, e nesse sentido muitas pessoas agem como figuras maternas mesmo quando não há qualquer biologia envolvida. Muita gente também acredita que suas mães não agem como mães, e muitos encontram outras figuras maternas em mentoras, professoras, parentes e amigas. Então acho que o que estou querendo dizer é: são as duas coisas.
Siga-nos