Ainda não é um desespero

Por Pedro Gabriel

27 / outubro / 2020

Inspirado pela manhã de sol aqui de São Paulo, a obra de hoje se chama Morning Sun e foi criada pelo artista norte-americano Edward Hopper em 1952. Nela, vemos mais o que não vemos do que aquilo que realmente se instala em nosso olhar. É impressionante a capacidade que Hopper tem de nos dizer tanto com tão poucos elementos figurativos.

A decoração é inexistente. O quarto aparenta vazio, sem quadros. Apenas uma luz se faz presente para desejar bom-dia, talvez. Há uma figura pensativa, central, é evidente. Trata-se de uma mulher solitária acompanhada unicamente de suas tantas reflexões. Ela parece se aquecer com o breve sol matinal para, quem sabe, esquecer-se também um tiquinho nesse caos que nos cerceia diariamente. Os raios tecem uma espécie de casaco invisível, natural. Só os pensamentos parecem movê-la o que se passa na sua mente? Será que desdobra suas ideias sobre as mazelas da modernidade? Mas ela ainda sonha, será? Ela está imóvel. (Aliás, é uma característica marcante das pinturas de Hopper: o ser se torna um móvel imóvel). Ela ignora, inclusive, o observador: eu, você, o restante da humanidade.

Tudo é tão aqui dentro: a pintura de um sentimento. No casulo do seu apartamento, o aperto (angústia?) aperta menos. Ela se sente protegida, apesar de tudo se apresentar turvo. Ela está encolhida, acolhida por sua própria força: amor-próprio? A janela aberta ganha a dimensão de um pulmão, de um órgão vital. Um respiro necessário nesse sufoco ordinário. Como se a cidade grande fosse um espelho para a sua pequena solidão. E vice-versa. Ela também não seria uma espécie de reflexo dessa metrópole? Afinal, quem ela está encarando? A ventana? A própria alma? Nunca saberemos. A fenestra surge como se fosse o segundo personagem desta tela. Incita um diálogo. Um silencioso diálogo…

Lá fora, o cotidiano segue sua rotina infalível de estragar o mundo. A cidade industrial continua. As usinas não param. A fumaça é nosso novo oxigênio. Triste cenário. Mas, por mais inquieta e melancólica, a arte de Hopper não invade o desespero. Há uma calma escondida. E é nela que devemos nos apegar para não apagar o que temos de mais potente: a capacidade de recomeçar. Mesmo quando não o vemos, o sol nasce para todos, todos os dias. 

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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