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Chegadas e partidas: uma viagem pela maior estrada dos EUA

15 / setembro / 2022

Por João Lourenço*

Revolta, descoberta e aventura são palavras que surgem quando se pensa na jornada do herói. E quando essa jornada acontece em uma estrada sem destino certo o cenário fica ainda mais interessante. O cinema está repleto de exemplos de histórias assim: O Mágico de Oz, Thelma & Louise e Pequena Miss Sunshine. São os famosos road movies, nos quais os personagens costumam enfrentar vários desafios até chegar em algum tipo de recompensa no final da estrada. Mas o gênero não surgiu com o cinema — foi emprestado da literatura. Apesar de não haver algo chamado “road book”, a literatura sempre fomentou esse tipo de narrativa. A Ilíada e a Odisseia, de Homero, talvez sejam os primeiros exemplos de road trip da literatura ocidental.

Independentemente da origem, desde a epopeia grega até as aventuras de Huckleberry Finn, nos livros do norte-americano Mark Twain, o gênero segue se atualizando e permanece em forma. E os principais elementos da narrativa on the road estão presentes também em A estrada Lincoln, novo livro de Amor Towles que tem encantado passageiros como Barack Obama e Bill Gates. Mas, antes de embarcar nessa história, selecionamos algumas paradas obrigatórias.

 

Engrenagem

A estrada Lincoln começa em uma pequena cidade no estado de Nebraska, Estados Unidos. Após cumprir pena de mais de um ano por homicídio culposo, o jovem Emmett Watson está em busca de um recomeço. Emmet, porém, perdeu o pai e a propriedade da família. Agora, ele precisa assumir o papel de guardião do irmão mais novo, Billy, um garoto inteligente de oito anos. Para fugir dos olhares maldosos das pessoas da cidadezinha onde moram, eles decidem, então, procurar a mãe, que há anos os abandonou. Supostamente, ela está morando na Califórnia, e é para lá que os irmãos decidem ir, tentando começar uma vida nova.

Mas o plano muda de rumo assim que os dois se deparam com colegas de Emmett do reformatório, Duchess e Woolly. Ao contrário de Emmett, que cumpriu a pena completa, Duchess e Woolly, jovens imprevisíveis e destemidos, fugiram da instituição e pretendem seguir um caminho mais arriscado do que aquele que os Watson tinham imaginado trilhar. Juntos, os quatro personagens embarcam em uma viagem que acaba em Nova York, ou seja, destino oposto ao plano inicial dos irmãos.

 

O ideal americano

Toda a história se passa ao longo de 10 dias, em junho de 1954. Esse período ajuda a ilustrar os conflitos e desejos dos jovens que transitaram entre esse momento oportuno da história. O mundo estava diferente após as duas grandes guerras e os Estados Unidos, em particular, passavam por uma conjuntura de prosperidade econômica e social. O ideal americano de construir uma vida nova e o mito de tornar-se quem você deseja ser apesar das adversidades ainda eram um sonho possível. Comparado aos padrões de hoje, esses adolescentes da história apresentam uma maturidade que corresponde às grandes responsabilidades daquela época.

Amor Towles utiliza o perfume do espírito do tempo para compor as personalidades fortes e distintas de seus personagens. Os quatro jovens representam ideais diferentes e, às vezes, opostos. Isso se traduz em traços que estão além da personalidade, como os questionamentos éticos e morais de cada um. Das divergências, o autor oferece ao leitor um retrato multifacetado dessa transição da juventude para a idade adulta. Em A estrada Lincoln o leitor também ocupa um lugar de destaque na jornada desses jovens, com lacunas para questionamentos sobre os momentos que constroem e solidificam a subjetividade. Assim, o livro oferece discussões sobre o inato e o adquirido e sobre como tamanha influência do meio, do instinto e da intuição se manifestam na personalidade e nas escolhas de cada um.

 

Intersecção

As distinções nas personalidades e nos desejos dos personagens também se refletem na estrutura da narrativa. O autor se utiliza de diferentes pontos de vista para representar os diversos personagens. Alguns capítulos são narrados na terceira pessoa, outros na primeira. A mudança de tom e ritmo ajuda o leitor a viajar pela estrada que o autor propõe.

Para além da forma, a narrativa tem um clímax que beira a sensação de urgência de uma contagem regressiva. A cada capítulo os personagens entram em aventuras arriscadas, e essas aventuras são intercaladas com voltas ao passado que explicam a prisão de alguns deles. Trata-se de um romance repleto de pistas espalhadas por um labirinto de vozes e cores diferentes. Apesar de ser um calhamaço de quase 600 páginas, as múltiplas camadas tornam o livro convidativo.

 

De Leste a Oeste: a maior estrada dos Estados Unidos

Além de ser o título do romance, a estrada Lincoln tem uma história curiosa. Ela foi a primeira rodovia pavimentada a cruzar os Estados Unidos de Leste a Oeste. O projeto foi idealizado na década de 1910 por um amante do automobilismo. Esse foi um período no qual o número de automóveis cresceu mais de quinze vezes. O país estava em ebulição, mas apenas 10% das estradas eram pavimentadas.

Fora as más condições, havia poucas estradas projetadas para conectar ou cruzar estados, e nenhuma delas tinha placas de sinalização. Assim nasceu a estrada Lincoln, financiada de forma independente por empresários e pelo público. Começando na Times Square de Nova York e terminando no Lincoln Park em São Francisco, a via corre praticamente em linha reta e atravessa doze estados.

 

O condutor

O autor é um Amor de pessoa! Brincadeiras à parte, as raízes da família de Amor Towles estão na Nova Inglaterra puritana. Nos séculos XVI e XVII, os puritanos dessa região evitavam nomear seus filhos com nomes de santos, afinal, isso era uma tradição católica. No lugar disso, os protestantes e puritanos passaram a nomear os filhos com nomes de virtudes cristãs. Na época, nomes como Castidade, Caridade, Paciência, Prudência e Coragem eram comuns entre eles. Assim surgiu o nome do autor, do latim, que representa uma das maiores virtudes cristãs.

A estrada Lincoln é o terceiro livro de Towles. Assim como no romance anterior, Um cavalheiro em Moscou, o autor se interessa pelas particularidades da subjetividade humana. Trata-se de um interesse genuíno que se traduz em personagens que fogem das divisões binárias de vilão e/ou herói. Neste romance, Towles explora como o mal pode ser vencido pela bondade e pela decência. O autor apresenta uma versão de mundo na qual as curvas, os obstáculos, os desvios e os atalhos são apresentados no mesmo nível de igualdade. Assim como na vida real, mesmo o GPS mais poderoso pode falhar. De Leste a Oeste e de Norte a Sul, Towles reflete que a jornada em linha reta nem sempre é o caminho mais interessante.

 

*João Lourenço é jornalista. Passou pela redação da FFWMAG, colaborou com a Harper’s Bazaar e com a ABD Conceitual, entre outras publicações estrangeiras de moda e design. Atualmente está em Nova York escrevendo seu primeiro romance.


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