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Pageboy e a visibilidade transmasculina

28 / junho / 2023

“Cuidado com o que você finge ser, pois você é o que finge ser.”

Por Jonas Maria*

No início do Mês Internacional do Orgulho LGBTQIA+ tivemos o lançamento de Pageboy, livro de memórias do ator Elliot Page, que em 2020 se declarou trans publicamente. O livro, de 304 páginas, narra partes da vida de Page, desde sua relação complexa com os pais, passando pela descoberta da sua sexualidade e seu primeiro beijo, até os bastidores de Hollywood, seu entendimento enquanto pessoa trans e sua cirurgia. Os relatos são sensíveis, repletos de detalhes e emoções. A sensação é a de estar lendo o diário de alguém; é como saber os segredos mais íntimos daquele amigo querido, que por muito tempo parecia esconder algo, mas que agora te permitiu conhecê-lo por completo.

Esse era um livro muito aguardado pela comunidade, em especial pela comunidade de homens trans. Assim que foi anunciado, amigos vinham me perguntar se eu estava sabendo da novidade, outros se o leríamos no meu clube de leitura, que é dedicado a obras que tenham sido escritas ou protagonizadas por pessoas trans. Desde o lançamento, meu feed está cheio de fotos com o livro, seja em primeiro plano, com os leitores declarados, seja no fundinho de um story, com pessoas que sei que não têm muito o hábito de ler, mas não poderiam deixar essa história passar. A obra está em todo lugar e não há como não ver: a capa é memorável e parece fazer referência ao livro Female Masculinity, do teórico trans Jack Halberstam, que discute como a masculinidade não é uma exclusividade do homem cisgênero.

A euforia é geral e não por acaso: crescemos sem referências transmasculinas. Quantos homens trans famosos, que ocupam lugares de prestígio e destaque, são conhecidos? Não é incomum o desconhecimento das pessoas envolvendo a comunidade trans. E, quando há algum conhecimento, muitas vezes ele é limitado e carregado de estereótipos e preconceitos, por muitos anos produzidos e endossados pelas grandes mídias, como jornais, programas de TV e o próprio cinema, que exploraram a transexualidade de maneira sensacionalista e exotificada. O mais comum, porém, ainda é o desconhecimento da existência de homens trans. Podemos contar em uma só mão a quantidade de filmes dedicados a essas vivências. Talvez o mais famoso seja Meninos não choram, um drama biográfico de 1999, inspirado na história real de Brandon Teena e protagonizado pela atriz cisgênera Hilary Swank, que venceu o Oscar por sua atuação. Se pensarmos no cenário nacional, foi apenas em 2017, 66 anos depois da primeira telenovela ir ao ar, que tivemos nosso primeiro personagem transmasculino, na novela A força do querer, e que também foi interpretado por uma atriz cisgênera, Carol Duarte. Não apenas são poucos personagens, como são menos ainda os atores trans interpretando tais personagens.

E como essa falta de visibilidade pode nos afetar? Apesar de desde a infância se enxergar com outros olhos e perceber que havia algo de diferente em si mesmo, Elliot nos conta como somente com quase 30 anos cogitou a possibilidade de ser trans. Assim como ele, eu e a maioria dos meus amigos também descobrimos essa possibilidade já na vida adulta. Meu primeiro contato com a temática foi através da internet, há mais de uma década, em um site que trazia uma manchete intencionalmente contraditória: os 10 homens mais bonitos que nasceram mulheres. Ao ler a matéria, ainda menos sentido aquilo fazia, pois as imagens mostravam homens como qualquer outro homem. Apenas depois de pesquisar mais, por ficar confuso e interessado com o que havia visto, entendi do que se tratava. A partir dali, minha vida nunca mais foi a mesma.

“Sinto que estou realmente vivendo minha vida pela primeira vez. Estou simplesmente feliz. Acordando e passeando com meu cachorro, saindo com amigos, e sinto que estou realmente dentro do meu corpo pela primeira vez”, declarou Page em entrevista recente à BBC News.

Pode parecer curioso que um homem de 36 anos diga que está começando a viver sua vida agora, que pela primeira vez se sente confortável o suficiente para se enxergar no próprio corpo. Se enxergar no outro e em si mesmo é uma experiência que não está dada, tampouco é irrelevante. No livro, Elliot Page nos mostra como uma vida pode ser moldada pelo olhar do outro, e como podemos romper com isso e com todas as expectativas alheias e enfim vivê-la como devemos. Para nós, esse é um livro de celebração, que permite que a gente se orgulhe da história que estamos construindo enquanto comunidade, em nossos próprios termos. Para os aliados, esse livro é uma oportunidade de deixar de lado as histórias distorcidas acerca do que significa ser trans e enfim se conectar com nossa realidade, muito mais complexa e muito menos binária.

*Jonas Maria é escritor e criador de conteúdo. Além do seu canal no YouTube, no qual fala sobre livros, faz análises de filmes e séries e compartilha suas experiências pessoais, tem também um podcast, o Degenerados, e coordena o Texto Junkies, clube do livro que promove a leitura e a discussão de obras que envolvam pessoas trans.


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