O mais bonito, por Leticia Wierzchowski

19 / abril / 2013

Tocador de realejo, Djanira (1951)

Meu tio está doente. Mesmo doente, até bem poucos dias atrás, quando sofreu uma cirurgia com alguns reveses, meu tio sempre tinha um sorriso no rosto. Meu tio vivia sorrindo, às vezes a vida dificultava-lhe o sorriso, mas meu tio insistia. Lembro dele com este sorriso perene, atrás de um violão, e nós, os primos todos, ficávamos quietos para ouvi-lo cantar As rosas não falam do Cartola. Este meu tio é o irmão mais velho do meu pai, e o meu pai, como ele e a irmã caçula, também sempre adorou cantar — uma família de cantores que sabia como poucos fazer uma festinha no sábado à noite.

Fui visitar o meu tio no hospital na semana passada, e ele estava lá, mergulhado num sono medicamentoso. Fiquei ao lado dele, e voltei a ser criança por alguns momentos, lembrando quando ele nos chamava, a mim e às minhas irmãs, e então dizia em voz alta: “Agora vou dizer qual de vocês três é a mais bonita, mas vou dizer no ouvido.” Ficávamos em rebuliço, e o tio então soprava no ouvido de cada uma: “A mais bonita és tu, mas não contes pras outras porque senão elas ficam tristes.” E assim meu tio fazia, de menina em menina, espalhando a sua doçura, alegrando a nossa tarde com os seus elogios, e depois dizia que fôssemos brincar, e então íamos, mas muito mais felizes do que antes.

A vida é maravilhosa e assustadora simplesmente porque não para — eu já estou com quarenta anos, e meu filho pequeno tem a idade que eu tinha quando o meu tio, lá no pátio da nossa casa, soprava ao meu ouvido, tu és a mais bonita. As minhas memórias de antigos sábados felizes estão cheias do meu tio, cheias das farras e cantorias que ele armava com o meu pai — os dois irmãos, sempre tão parecidos, que brincavam de confundir a gente! —  e tudo isso é uma coisa que vai e vem dentro de mim, uma coisa que lateja e que despreza palavras porque não quer, não precisa ser definida — e talvez seja por isso que eu me sinto tão desajeitada hoje na frente do computador. A minha tia, uma tia querida que eu vejo tão pouco, estava lá no hospital conosco naquela noite, visitando o irmão mais velho. Assim como eu, minha tia tinha as suas reminiscências: recordava de quando ela e meu tio iam juntos para o colégio numa Porto Alegre que já se perdeu no tempo. Porque tudo se perde no tempo, menos a alegria e o carinho que a gente semeia por aí. Foi isso que pensei quando deixei o hospital, o coração apertado, mas também ciente de que tudo estava certo, mesmo estando absolutamente errado.  Antes de sair, eu disse no ouvido do meu tio: “Não conta para ninguém, mas tu és o mais bonito.”

Confira outras colunas de Leticia Wierzchowski:
Dois livraços
A história dos caroços
Um verão indiano
Tudo junto e misturado

Leticia Wierzchowski assina uma coluna quinzenal no blog da Intrínseca.
Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Seu romance mais conhecido é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

Seu próximo livro, ainda sem título definido, será publicado em junho pela Intrínseca.

Comentários

2 Respostas para “O mais bonito, por Leticia Wierzchowski

  1. Que lindo, Leticia. Espero que tudo corra bem com o seu tio.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *