Viagens boas e ruins, por Leticia Wierzchowski

5 / abril / 2013

Leticia Wierzchowski

Coluna publicada no jornal Zero Hora, em 4 de abril de 2013.

Voltar do feriado de Páscoa pela BR116 exige uma paciência quase celestial. De Pelotas a Porto Alegre, a estrada tem uma única faixa — a ampliação, que está começando, parece já chegar atrasada. Você espera, espera e espera, espera por horas num congestionamento horrível, e depois tem que pagar o pedágio. Não sou contra pedágios, sou contra estradas mal sinalizadas, estreitas e defasadas como a BR116. A gente lá, vencendo cada quilômetro de congestionamento com um suspiro, enquanto no acostamento as placas de sinalização mais parecem uma pegadinha: Porto Alegre, 170 km, e você anda quinze minutos para encontrar Porto Alegre ainda mais distante, pois a próxima placa indica a Capital a 186 km. Segundo a sinalização da BR116, Porto Alegre parece ser um lugar cambiante, de mutável localização, como a antiga Avalon dos druidas.

De qualquer maneira, quem não está dirigindo sempre pode ler dentro do carro. É certo que a maioria das pessoas tem enjoos ao ler em movimento, mas como a BR 116 não anda mesmo, o problema se anula, de modo que foi na companhia da escritora canadense Alice Munro (cujos contos eu li durante todo o feriado) que esqueci boa parte do imbróglio da BR. Se você nunca leu Alice Munro, tem que ler. Jonathan Franzen em seu livro de ensaios Como ficar sozinho escreveu um longo e elogioso texto sobre Alice e sua obra (“Leia Alice Munro, leia Alice Munro!”, escreve Franzen). E Alice Munro é realmente uma grande ficcionista, uma contista que narra suas histórias com maestria, penetrando na pele dos seus personagens com tamanha sutileza, revelando detalhes num tempo perfeito, guiando as palavras pelo seu caminho sem tropeços, nem gritos, nem desvios. No Brasil, Alice Munro tem publicadas as coletâneas Fugitiva e Felicidade demais. Em seu ensaio, Franzen se pergunta: uma ficção pode salvar o mundo? E ele mesmo responde: quase certamente não. “Mas há uma chance razoável”, diz Franzen, “de que a ficção possa salvar a nossa alma”. Alice Munro fez mais do que salvar a minha fastidiosa volta do feriado, ela me levou para dentro de outras vidas, tão diferentes da minha e, no fundo, tão iguais. Porque Alice não é grandiloquente nem espalhafatosa, sua prosa fala manso e baixinho, e trata de entender essa coisa tão terrível e maravilhosa que é viver. Alice Munro sabe das coisas e não cobra pedágio pela viagem.

Confira outras colunas de Leticia Wierzchowski:
Dois livraços
A história dos caroços
Um verão indiano
Tudo junto e misturado 

Leticia Wierzchowski assina uma coluna quinzenal no blog da Intrínseca.

Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Seu romance mais conhecido é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Seu próximo livro, ainda sem título definido, será publicado em junho pela Intrínseca.

Comentários

Uma resposta para “Viagens boas e ruins, por Leticia Wierzchowski

  1. Voltar na BR362 também passa pelo mesmo percalço. Com um detalhe: não temos anulado os problemas para possibilitar leituras. A rodovia que mais mata no Brasil, não permite a nenhum romanece nos salvar.

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