[o menino que tinha medo de poesia]

Por Pedro Gabriel

25 / março / 2014

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─ Mãe, acho que tem um poema debaixo da minha cama!

Quando menino, a poesia me assustava. Parecia ter dentes afiados, pernas desajeitadas, mãos opressoras. E nem as mãos da professora mais dócil conseguiam me acalmar. Não compreendia uma palavra, uma metáfora, uma rima pobre, rica ou rara. Não entendia nada. Tentava adivinhar o que o poeta queria dizer com aquela frase entupida de imagens e sentidos subjetivos. Achava-me incapaz de pertencer àquilo. Não conseguia mergulhar naquele mundo. Eu, sem saber nadar em versos, me afogava na incompreensão de um soneto; ela – a tão sagrada poesia – não me afagava e me deixava morrer na praia, entre um alexandrino e um heptassílabo.

Toda vez que eu era obrigado a decorar poesia, sentia vontade de sumir, de virar um móvel e ficar imóvel até tudo se acabar. Por dentro, sentia azia, taquicardia, asma espontânea, tremelique e gagueira repentina. Por fora, fingia que estava tudo bem. Eu sempre escolhia o poema mais curto da lista que a escola sugeria. Naquele dia, sobrou Pneumotórax, de Manuel Bandeira, e eu queria ser aquele paciente para não precisar declamá-lo. Eu queria tossir, repetir sem parar: trinta e três… Trinta e três… Ter uma doença pequena, uma desculpa qualquer, um atestado médico assinado pelo meu avô que me deixasse em casa – não a semana toda, mas só o tempo da aula.

Depois, para a prova de francês, não tive escolha: fui obrigado a decorar Le dormeur du Val, de Rimbaud. Eu lembro que, antes de ficar em pé de frente para o meu professor, eu queria que alguém me desse dois tiros no peito. Queria ser esse soldado e dormir, tranquilo, na paz celestial daquele vale até que a turma toda esquecesse a minha existência.  Ou que a guerra fosse declarada finda. Ou que eu fosse declamado culpado. A Primeira Guerra Mundial parecia durar menos do que aqueles 15 minutos de exame. Minha boca está seca até hoje. Minhas mãos estão molhadas até agora. Só eu sei o que suei por você, querida Poesia.

Aos 17, a poesia ainda me apavorava. Podia ser o verso mais delicado do mundo, eu tinha medo. Podia ser o poeta mais simpático da face da Terra, eu desconfiava. Desconversava, lia outra coisa. Ou não lia nada. Talvez por não querer entendê-la. Talvez por achar não merecê-la. E assim ficava à mercê da minha rebeldia.  Não queria aprender a contar sílabas, queria ser verso livre. Tolo! Até a liberdade exige teoria!

Se hoje eu pudesse falar com aquele menino, lhe diria que a poesia não é nenhum decassílabo de sete cabeças. Que se ela o assusta é porque ela o deseja. Que se ele sente medo é porque ele precisa dela. Não há mais monstro debaixo da sua cama. O monstro agora está em você.

– Filho, acho que tem um poema por dentro de quem você ama…

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

13 Respostas para “[o menino que tinha medo de poesia]

  1. “.. até a liberdade exige teoria!”
    Consigo supirar a cada poema seu. E nem adiantou fugir tanto, você literalmente nasceu para tal! Lindo lindo <3

  2. Sempre genial, a cada palavra me encanta mais e mais. Por favor não pare de escrever !

  3. O princípio de tal contexto, se compara a realidade da grande maioria das crianças, que talvez não tenham uma apresentação devida entre leitor e poesia de forma lúdica, para que proporcione certo costume desde seu início de formação.
    Alex Ricardo – Ator
    Palmeira do Índios – Alagoas. 26 de março de 2014.

  4. “Eu sempre escolhia o poema mais curto da lista que a escola sugeria”, e eu sempre escolho a sua poesia… Estava com saudade dela. </3

  5. Lendo, parece que o menino ainda sou eu.
    “- Filho, acho que tem um poema por dentro de quem você ama…”
    Ainda tenho medo de poesia, mas um medo curioso e inventivo.
    Gostei muito do texto.

  6. putz arrupiei aqui , o monstro sempre esteve em você , so agora você deixou ele sair . Agente se assusta com o que agente quer …..

  7. Gostaria muito de ter acesso ou pelo face ou pelo email.

  8. Simplesmente lindo, amo seus textos Antônio.

  9. Por mais que você escreva outros textos, sempre volto nesse. Talvez porque tenha sido o primeiro que eu li, talvez não. Talvez porque ele desperta a poeta que existe em mim, talvez, não. Eu não sei… Ou simplesmente por contar a minha vida. O meu medo por palavras e o meu amor por elas. O meu pavor por versos e poemas, simplesmente porque eu os interpretava diferente… Simplesmente porque ao invés de pensar e criar rimas, eu escrevia com o coração.
    Assim, eu diria para a pequena menina apavorada: “Garota, não tenha medo. Você faz poesia. Você transborda poesia. Você é poesia…”

  10. Curioso que até hj eu tenho certa dificuldade para ler poesia, e me sinto exatamente assim, frustrado. Mas aos poucos eu vou aprendendo… textos como do Anton… cof cof … Pedro Gabriel me fazem ter mais sede pela poesia, e por culpa sua, há pouco tempo eu li “Toda Poesia” do Leminski. 🙂 continue sempre talentoso, obrigado por nos presentear com seu talento.

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