Um leão no sábado à tarde

Por Leticia Wierzchowski

7 / agosto / 2014

coluna 20_crianças fazendo castelo de areia

Passei o último domingo sob os auspícios do Antonio Prata, lendo o delicioso Nu, de botas (Cia. das Letras). Nesse livro de capítulos curtos, quase crônicas, Antonio nos leva pelos mares da sua infância com uma narrativa tão delicada, tão autêntica, que a gente voltar a ser criança junto com ele. E ri, ri muito. Eu não estava animada naquele dia, mas consegui rir alto, saindo do meu desgosto para as aventuras do menino Antonio como quem embarca num balão. E todas aquelas histórias me fizeram lembrar de uma passagem da minha infância – vou contá-la, mas sem a mestria do Antonio Prata.

Estávamos no litoral e era verão. Eu devia andar lá pelos sete anos, porque a minha irmã caçula era um bebê de seis meses – o que deixava a minha irmã do meio com uns quatro anos, mais ou menos. Bem, queríamos ir à praia depois do almoço, era um sábado lindo de sol. A minha mãe colocou a caçula no carrinho e, dando bye-bye, foi visitar a cunhada. Meu pai que nos levasse à praia. Fomos ao pai, portanto. Ele devia ter bebido umas duas cervejas no almoço, e o seu plano era uma boa soneca. Mas, com intenções diversionistas, disse que fôssemos brincar na varanda, ele dormiria um pouco e, depois, praia. Era um tempo onde ninguém parecia ter medo de deixar duas crianças sozinhas, de modo que ele fechou a porta do quarto e caiu num sono cheio de roncos.

Minha irmã e eu brincamos por algum tempo, mas o sol estava lindo, os vizinhos saíram com seus apetrechos de praia, e eu decidi acordar o pai pela primeira vez. Fui uma, duas, três vezes chamar a criatura, mas o máximo que ele fazia era balbuciar um “daqui a pouco“, e virar de lado, babando. Aquilo começou a me irritar, afinal estávamos sozinhas por ali, a tarde escorria pelo ralo e, se uma bomba caísse, meu pai nem perceberia. Acho que eu disse isso lá pela quinta ou sexta vez em que fui acordá-lo, “pai, se alguém nos roubar, tu nem vê, ou se um leão entrar aqui e comer a gente, tu nem escuta o barulho“. O pai deve ter respondido que não tinha ladrão, nem leão por ali. Quanto ao ladrão, acho que ele estava sendo um pouco confiante, mas leão? Bem, eu tinha sete anos e queria ser escritora.

Voltei pra sala furiosa, era evidente que não iríamos à praia. Acho que a tarde estava findando quando eu peguei duas facas na cozinha, dei uma para a minha irmã e com a outra comecei a arranhar os móveis da sala, todos os móveis da casa do meu avô, dizendo: Faz assim, ó, três risquinhos, um do lado do outro. No nosso tédio, aquilo caiu como uma luva e, enquanto o pai dormia, arranhamos euforicamente a sala inteira. Quando achei que a bagunça já estava de bom tamanho, guardei as facas na gaveta da cozinha, posicionei-me com a minha irmã na sala e ordenei: “Agora grita!”.

Gritamos como duas doidas, e meu pai veio correndo do quarto com a cara toda amassada, em desespero. “Que aconteceu, que aconteceu?”, perguntava. O coitado estava em pânico. E eu, muito sobranceira, respondi: “Entrou um leão aqui em casa querendo nos pegar, pai… Foi uma luta feia, mas a gente escapou.”Meu pai estava de sunga e, por sorte, não tinha um cinto pra ameaçar-nos com uma sova (de qualquer modo, ele nunca foi de bater em filho), mas ficou furioso porque eu o acordara daquele jeito com uma besteira daquelas. “Besteira?”, eu disse, toda prosa. “Pode olhar os móveis, o leão arranhou tudo.” Acho que ficamos uma semana sem ir à praia, de castigo. E a minha irmã ainda ficou de mal comigo por uns bons dias. A conta do marceneiro? Bem, eu não sei quando custou.

LETICIA WIERZCHOWSKI é autora de Sal, primeiro romance nacional publicado pela Intrínseca, e assina uma coluna aqui no Blog.

Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Um de seus romances mais conhecidos é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Leticia escreve às sextas.

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