Das brancas madrugadas

Por Leticia Wierzchowski

9 / janeiro / 2015

nightwindows

“Night Windows”, de Edward Hopper (1928)

Viajamos de férias e, num desses dias ao alvorecer, fui buscar uma amiga que chegava de ônibus para nos visitar. Saí da cama às cinco da manhã, mergulhando no mundo mágico das coisas desacordadas, um mundo silencioso, estático e gelatinoso, um mundo como que escravo de um estranho feitiço, tal qual o reino onde a princesa, vítima de uma malévola bruxaria lançada ainda no seu nascimento, é posta a dormir depois de tocar com o dedo na roca proibida. As horas brancas da madrugada, em que as casas cerradas guardam o sono dos seus moradores; em que o tempo anda de chinelas e pisa leve, na ponta dos pés, como uma daquelas tias velhas dos poemas do Mario Quintana.

Acordar no meio da noite — para mim que sempre desperto com o sol alto —, acordar no meio da noite, não para sossegar o filho preso em um sonho ruim, não para amamentar o bebê no berço ou trocar sua fralda e sentir a delícia do seu corpinho cálido; acordar no meio da noite para sair à rua é uma experiência estranha. A rua onde vivo não é a mesma no meio da noite. A cidade não é a mesma no meio da noite, nem ampara nas suas calçadas os mesmos habitantes da cidade diurna. Tudo é da lua e das estrelas, e até o mar, o mar onde molho os pés e onde meus filhos brincam, é outro no meio da noite. Misterioso e amarelado, o mar é uma colcha espessa que geme como um grande animal que subitamente perdeu o sono.

Assim me fui, naquela madrugada, dirigindo por ruas desertas, o trajeto feito em cinco minutos — no meio da noite a cidade entrega-se sem receios. Na rodoviária, os únicos laivos da vida: as caras insones dos dois guardas, o rosto triste e acabrunhado da moça no balcão da companhia me dizendo que o ônibus chegaria em dez minutos, e uns poucos e ruidosos adolescentes voltando de alguma festa que passavam pela calçada cantando alto por uns instantes; logo suas vozes morreram, apagaram-se como uma fogueira onde se joga um balde de água. Até mesmo para eles o silêncio imponderável da cidade adormecida causa estranheza. O grupo seguiu outra vez quieto pela rua deserta, enquanto eu buscava um banco onde me acomodar. Os dez minutos transformaram-se em quarenta, uma eternidade de silêncios e de bruma.

A madrugada arrasta-se preguiçosamente na sua esteira de segredos; e então, como um aviso, como uma mágica, uma criança chora no prédio em frente e esse choro, agudo e sincrônico, abre o caminho para vida: lá para os lados do horizonte uma nesga de vermelho se incendeia trazendo consigo a primeira luz da manhã, numa esquina dobra o ônibus que eu espero. Enfim, o dia começa. Em seu quarto na rua em frente, a criança para misteriosamente de chorar.

 

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Leticia escreve às sextas.

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