Por Marcelo Costa*
“Tudo o que você precisa é de amor”, cantavam os Beatles em 1967. Apesar de ser uma frase aparentemente simples e direta, “All You Need Is Love” esconde em suas entrelinhas um emaranhado de desejos, traumas, vícios e tentativas que, no fim, soa como um trote providenciado por alguma entidade divina. Ao menos é isso que os personagens de David Nicholls parecem dissimular nas páginas de Um dia e do recém-lançado no Brasil Nós, romances com vigas profundas estruturadas neste sentimento fora de moda chamado amor.
Sim, porque é amor o que Dexter sente por Emma, e o que Emma sente por Dexter. Eles não sabem, e nem nós quando começamos a transitar pelas páginas de Um dia, ainda que — após séculos de romances literários e décadas de filmes hollywoodianos e canções pop melosas — os sinais estejam todos ali, brilhando como neon numa rua escura. Talvez porque saber não seja o fator mais importante da equação, e daí deslizamos por um túnel sem fim de acasos e acusações, culpas e desculpas, que dizem mais sobre inaptidão do que necessariamente sobre amor.
E é amor também o que o cientista Douglas Petersen, protagonista de Nós, sente por sua esposa, a espirituosa Connie, e por seu filho Albie, ainda que ele considere AMOR (assim mesmo, em letras maiúsculas e, de certa forma, intimidadoras) algo que não seja exatamente aquilo de que as pessoas realmente precisam. Há aqui um interessante aprofundamento na questão de genes, ainda que o cientista (uma bela escolha de David Nicholls) não toque deliberadamente no assunto nem use o termo de forma direta para explicar/justificar suas motivações.
Na verdade, Douglas Petersen até tenta despistar. A certa altura de Nós, ele se volta para o leitor e explica: “Acredito que esse tipo de história é chamado de romance de formação.” Esse é o seu ponto de vista sobre os últimos acontecimentos com seu filho Albie, mas… Bem, estamos nós, leitores, “conversando” com Douglas e acompanhando sua história, quando percebemos que ela, no final das contas, é o romance de formação sobre um homem de 54 anos que parece mais influenciado pelo pai, com o qual não tem um relacionamento aberto, do que possa imaginar.
Está tudo ali, brilhando como neon: a-m-o-r. Ou, sendo um pouco mais preciso, é como ensinaram Douglas (e a nós… ok, ok, caro leitor, sem generalizar: a maioria de nós — mas pense no assunto) o que é amor. É o que ele tem. É o que ele tentou desesperadamente passar para o filho, e tudo ameaça desmoronar numa noite, quando, às 4h da manhã, Connie se senta na beirada da cama e diz a seguinte frase: “Acho que nosso casamento já deu o que tinha que dar, Douglas. Acho que quero me separar de você.”
Ele tem 54. Ela, 52. O filho, que está prestes a deixar a casa da família para ir para a faculdade, 17. Os três (na verdade apenas os pais, já que, se deixassem o filho escolher, ele iria para Ibiza sozinho e fim de papo) tinham planejado um Grand Tour familiar pela Europa, um rito de passagem para a vida adulta (que irá incluir sexo, drogas, negociantes de armas, músicos de rua, La Gioconda, Goya e Picasso, não necessariamente nessa ordem) com paradas previstas em Paris, Amsterdã, Munique, Florença, Verona, Roma e Veneza, e não vão desistir da viagem.
Junto com a família em trens movimentados lá vamos nós observando Douglas Petersen assistir àquele decantado filmezinho que muitos dizem passar na cabeça das pessoas quando elas estão próximas da morte. O que está morrendo, neste caso, é seu relacionamento com a esposa, e ele então começa a relembrar e reconstruir sua história (e a si mesmo), resumindo delicadamente sua vida em AC/DC: Antes de Connie e Depois de Connie. Fervorosamente assume: “O fato era que eu amava a minha mulher de tal forma que achava impossível expressar, de modo que raramente o expressava.” Pausa.
Não dizer talvez tenha sido o maior equívoco de Emma, mas se ela tivesse dito, algo teria mudado? Talvez sua maneira independente de lidar com o amor encontrasse a maneira libertária de Dex e as duas saíssem de mãos dadas para jantar em algum restaurante da moda, mas… daria certo? Ou será que estamos todos, incluindo Dex e Emma, condenados a esperar o “momento certo”, aqueles segundos românticos imperdíveis que, caso não sejam aproveitados (por medo, acaso ou vício), se tornam imperdoáveis?
O caso de Douglas e Connie é diferente: eles se encontraram. A questão que David Nicholls parece insinuar é: o encontro basta? Não só: Douglas é, à sua maneira, extremamente dedicado a Connie, mas como explicar que, após mais de 20 anos juntos, ela acredite que “o casamento já deu o que tinha que dar”? Ele não entende. Muitos não entendem. As pistas, no entanto, estão em Nós (mesmos). Eis um livro cativante que consegue dar alguns passos à frente de Um dia no que diz respeito a observar as relações humanas no mundo moderno.
Por fim, quem enxerga Douglas como um Dexter mais velho (se houvesse relação aqui seria mais de pai e filho) está observando apenas um item comum que os conecta: a maneira particular de cada um deles de lidar com o amor (ou o que eles compreenderam ser amor), objeto responsável pela dor e delícia de suas histórias (e de todos nós). Neste caso, os próprios Beatles avançaram no tema quando — na última música de seu último disco — cantaram: “E no fim o amor que você recebe é igual ao amor que você faz.” Fique atento, Douglas. E você também, caro leitor.
Playlist de Nós, de David Nicholls | por Marcelo Costa by Intrinseca on Mixcloud
Nota: Este Grand Tour sonoro é dividido em três partes (com as seguintes pistas):
1) confrontos musicais que, em Nós, dizem respeito ao gosto de apenas um dos personagens — ainda que a leitura (musical) se encaixe em um exercício de “diferenças” (algumas são músicas que ele ouviria; outras são para ela);
2) as covers inspiradas no repertório de Kat, a violoncelista;
3) as músicas que simbolizam cidades do Grand Tour: há uma música para Paris, outra para Barcelona e, ainda, uma para Amsterdã. E, sim, as conexões são intencionalmente clichês (as músicas nem tanto), porque, em certo momento, ao perceber o disco que está tocando ao adentrar um coffee shop holandês, o personagem pensa: “até mesmo eu teria rejeitado por ser um tanto óbvio.” Ainda assim foi mantida a escolha do budtender da Mellow Times Café.
01 – Carole King – “I Feel The Earth Move”
02 – Jackson 5 – “I’ll Be There”
03 – Abba – “S.O.S.”
04 – AC/DC – “Little Lover”
05 – Frank Zappa – “Motherly Love”
06 – Billy Joel – “You Look So Good To Me”
07 – Tom Waits – “Downtown Train”
08 – Barry Manilow – “Mandy”
09 – Wings – “Some People Never Know”
10 – Talking Heads – “Love -> Building on Fire”
11 – Mayra Andrade – “Les Mots d’Amour”
12 – Bob Marley – “Could You Be Loved”
13 – Everclear – “Brown Eyed Girl”
14 – Luna – “Sweet Child O’ Mine”
15 – Cat Power – “(I Can’t Get No) Satisfaction”
16 – Nina Persson & Nathan Larson – “Losing My Religion”
17 – Ed Prosek – “Homeward Bound”
18 – Patti Smith – “Smells Like Teen Spirit”
19 – Björk – “So Broken”
20 – Etta James – “Purple Rain”
21 – Ella Fitzgerald – “Night & Day”
P.S.: Das 21 canções/artistas, apenas uma não é citada nominalmente na história (das outras 20, ou o artista, ou a música aparecem em algum momento no romance) e está presente tanto para embalar corações partidos quanto para sonorizar o desespero do quintal dos surdos.
Sete conselhos: Diálogo ficcional entre Douglas Petersen e Dexter Mayhew
Ouça a playlist de Circo invisível, de Jennifer Egan
Marcelo Costa é editor do site Scream & Yell, um dos principais veículos independentes de cultura pop do país. Já passou pelas redações do jornal Notícias Populares, e dos portais Zip.Net, UOL, Terra e iG, além de ter colaborado com as revistas Billboard Brasil, Rolling Stone e GQ Brasil, entre outras. Participou da Academia do VMB MTV, do júri do Prêmio Multishow e do júri do Prêmio Bravo. Desde 2012 integra a APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte).
Olha, eu sou uma grande fã do autor e devo dizer que esse texto me fez sentir novamente muita coisa que senti durante a leitura dos livros, realmente David Nicholls tem o dom de tratar o amor, esse sentimento que apesar de ser abstrato é seguido por milhões de definições, em algo extremamente real e reconhecido no dia a dia. Obrigada pelo texto e parabéns por ele.
Parabéns! Ótimo texto para pensar em “nós”, mais um maravilhoso livro do David Nicholls.
*sai correndo pra comprar o livro*
Peraí que eu já volto… <3