testeTirania e nostalgia em quadrinhos

Por Alexandre Sayd*

árabefacebook

Nos anos 1980, bem antes do Estado Islâmico, da crise migratória ou mesmo do 11 de Setembro, o ditador da Líbia já era Kadafi, enquanto o tirano no governo da Síria era Hafez al-Assad, pai do atual presidente. Assim, apesar da distância de três décadas, ao lermos O árabe do futuro, do francês Riad Sattouf, temos a sensação de que o tema e o cenário escolhidos pelo quadrinista continuam estranhamente contemporâneos.

Na premiada trilogia, Sattouf narra em forma de quadrinhos sua infância e juventude. De pai sírio e mãe francesa, ele passou seus primeiros anos na Líbia e na Síria após o pai, doutor em história pela Universidade de Sorbonne, em Paris, conseguir emprego como professor nos dois países.

A partir das memórias, experiências e sensações de uma criança, o autor nos dá a oportunidade de vivenciar, sem preconceitos, esses dois universos. Este é o primeiro de vários aspectos geniais e talvez seja o grande trunfo da obra de Riad Sattouf: ele não tem a pretensão de nos ensinar nada, não pretende apresentar um ensaio geopolítico ou uma aula de história. Aprendemos muito com a obra, mas de forma natural e reflexiva.

É impressionante como a memória do autor é prodigiosa. Ela se apresenta com uma riqueza de detalhes que transcende em muito o meramente visual, com cheiros, sabores e impressões pessoais de quando Riad tinha pouquíssima idade. Ele se lembra de minúcias como o cheiro da França — em oposição ao cheiro da Líbia —, seus pratos preferidos e até mesmo de sonhos.

Impressiona em Sattouf, também, o domínio da arte de narrar em quadrinhos. Os personagens têm expressões hilárias e contagiantes, totalmente adequadas às cenas em que estão inseridos. O desenho lembra um pouco o dos Peanuts (“Charlie Brown”), de Charles M. Schulz, e Calvin e Haroldo, de Bill Watterson; porém com um uso muito diferente das cores, que, em O árabe do futuro, variam de acordo com o país retratado — na Líbia predomina o amarelo, na França, o azul, e na Síria, o rosa.

A história certamente perderia muito se transportada para outro formato que não o da graphic novel, e a qualidade da narrativa, somada à força da temática — que é crescer sob a tirania das ditaduras árabes —, coloca O árabe do futuro no mesmo patamar que Maus, de Art Spiegelman, sobre o holocausto, e Persépolis, de Marjane Satrapi, que expõe a opressão da mulher no mundo islâmico, em especial no Irã.

Na infância, Riad era louro e bem diferente do árabe médio, o que fazia dele um outsider instantâneo, com frequência excluído e hostilizado pelas outras crianças, que o tratavam por “judeu” e “filho do cão”. Nos ambientes mais isolados e remotos, sua família, em especial ele e a mãe, eram vistos pelos demais como extraterrestres. Isso não o impediu de fazer alguns amigos, que normalmente acabavam fascinados por seu exotismo e seus brinquedos do primeiro mundo.

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Riad tinha como grande herói e maior referência o pai, Abdel-Razak. Como leitor, vi no personagem um homem cheio de contradições e preconceitos, que se opõe ao obscurantismo religioso e às superstições do mundo árabe ao mesmo tempo que exalta figuras como Kadafi e al-Assad, incapaz de admitir os danos que esses tiranos causam aos países que governam. Enquanto critica o “atraso” de seus próprios pares e defende que o ensino deve ser livre do dogma religioso, Abdel afirma a todo instante a superioridade dos países islâmicos, defende o pan-arabismo e se recusa a enxergar a precariedade e a violência à qual expõe a si mesmo e a sua família.

As contradições presentes no pai de Sattouf se mostram, de certo modo, um reflexo de seu ambiente de origem. Especialmente na Síria, onde a família de Riad vive em uma pequena vila próxima à cidade de Homs, fica claro o contraste cultural entre a cidade grande e o interior, assim como entre os ricos e os mais pobres. Nos dois casos, os primeiros são muito mais ocidentalizados e livres das superstições e limitações religiosas.

Ao longo da história de Riad e sua família, somos introduzidos às particularidades desses dois mundos, ambos retratados de forma exótica. As crianças francesas são muito mais dependentes, imaturas e desinteressantes do que seus novos colegas árabes. No entanto, a comida na França é abundante e há lojas cheias de brinquedos, enquanto na Líbia, a comida é gratuita, mas escassa e pouco variada, e a distribuição dos alimentos ocorre em dias alternados para homens e mulheres, de modo a evitar contato entre os dois sexos. Já na Síria muitas crianças utilizam roupas de plástico que são réplicas das roupas verdadeiras: sapatos de plástico, no formato de tênis, com cadarços e tudo; uniformes escolares de plástico, com uma pintura que reproduz o cinto dos uniformes verdadeiros.

ArabeDoFuturo2_capa_MAINO segundo livro, lançado recentemente no Brasil, nos revela ainda mais sobre a Síria. Riad começa a frequentar a escola, onde encontra uma educação violenta e altamente doutrinária, com castigos físicos e cheia de leituras do Corão e exaltações ao presidente al-Assad. Lentamente ele passa a compreender melhor o mundo ao seu redor, até mesmo adquirindo uma visão crítica, e nós o acompanhamos nesse processo. Para leitores ocidentais, parece clara a maneira como a violência da sociedade se reflete no comportamento das crianças, que vivem brigando entre si e massacram animais como cães e sapos por esporte.

Percebemos também com maior nitidez como as mulheres são oprimidas e limitadas, reduzidas a cidadãs de segunda categoria — não há meninas nas escolas, e uma parente de Riad acaba assassinada por seus familiares após engravidar fora do casamento. Por fim, as contradições internas da Síria ficam mais evidentes em momentos como quando Riad e o pai vão ao bairro cristão para comprar carne de porco, ilegal no país, ou quando em uma visita à casa de um general importante os adultos consomem álcool, também proibido.

A obra é viciante, daquelas que nos deixam com pena de terminar a leitura. A parte boa é que os dois primeiros volumes estão disponíveis no Brasil, e já há um terceiro a caminho.

Riad Sattouf é cartunista e cineasta. Ele é mais conhecido por seu trabalho ao longo de dez anos no jornal de humor francês Charlie Hebdo, que foi alvo de um ataque terrorista orquestrado pelo Estado Islâmico em janeiro de 2015. Seu filme Les Beaux gosses recebeu o César de melhor filme em 2010, e o primeiro volume de O árabe do futuro ganhou em 2015 o prêmio principal do Festival de Angoulême, considerado o mais importante do mundo dos quadrinhos. Com a crise migratória, Sattouf ajudou seus familiares da Síria a conseguir refúgio na França.

Alexandre Sayd é jornalista e descendente de franceses e libaneses.

testePrimeirona

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Ah, a primeira vez…..

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Dá nervoso, as mãos tremem, a testa sua, a barriga dói, o coração dispara, eu seeeeei!!!

Mas o importante é agir como se você fosse a Angel num domingo cinzento lendo um livro enquanto Brad passeia com as crianças:

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Pensei tanto nas minhas PRIMEIRAS PALAVRAS do PRIMEIRO POST sobre meu PRIMEIRO LIVRO… e resolvi usar estas aqui: quero que vocês tenham ótimos momentos lendo cada linha de cada página.

Gentil como a gente começou com simples relatos de um casal recém-juntado que de repente se vê diante dos desafios daquela nova rotina: desde ir ao mercado, até comprar um sifão (Sabe o que é? Se sim, sabe onde vende? Não sabe? Leia o livro.)

No livro tem também a vela do casamento sendo usada numa emergência que não era emergência mas mesmo se fosse emergência não era pra usar mesmo eu tendo falado que só era pra usar na emergência mas jamais deveria ter sido usada em qualquer emergência. Tem a brincadeira do “Nem eu” – superengraçada para homens e imatura para mulheres (como quase tudo na vida). Isso sem falar nas promessas que sempre surgem no réveillon e nunca são cumpridas, mas ok, afinal, é bonitinho prometer. Tem briguinhas, implicâncias e discussões. Tem também crises e um desfecho, como em qualquer história……

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Agora, informação importante: ao longo do livro vocês vão ver este símbolo aqui, que é o QR CODE.

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Sempre que ele aparecer significa que tem um vídeo sobre aquele momento da história – e acredite: vale a pena ver!!!

Para isso é só baixar no seu celular qualquer aplicativo que leia QR CODES e pronto! Assim você vai ter acesso a conteúdos extras tipo este aqui:

Desde agora já apresento alguns personagens fundamentais da história toda: Nala (cachorra), Lucas (filho), Inez (terapeuta), Momô e Mocinha — os protagonistas. Momô e Mocinha querem te divertir, emocionar e, claro, te mostrar que certas coisas não acontecem só com você.

O lançamento é em junho! A noite de autógrafos é no dia 21/06! Deixa marcado, eu espero vocês lá!!!

Aí você se pergunta:

AHMÁQUEQUIVAITÊ?!?!?!?!?!?!?

(“Ah, mas que que vai ter?”)

Vai ter refrigerante, vinho, umas pastinhas com torrada e népur (“não é por”) nada não mas pastinha com torrada é muita onda!!!!!!!

Vai lá e compra um Gentil como a gente pra você, outro pro colega, mais um pra turma do basquete, mais outro pro pessoal do inglês, e também pra galera da igreja porque eles rezam com você então eles merecem!!!!

AHMÁNUMDÁ (“Ah, mas não dá”) pra ir nesse dia….

#fraco #masok

Se não der pra ir no lançamento, vai continuar tudo bem entre a gente, DESDE QUE:

Você seja uma boa pessoa;

Diga aos seus pais que os ama;

Cuida bem do seu filho;

Ajude o próximo;

Me siga no Instagram @gentilfernanda;

Compre o livro na pré-venda;

Compre o livro numa livraria perto de você (SEM-PRE QUIS DIZER ISSO!!!!!!!!)

Bom, agora chega de gastar conteúdo. É isso.

Espero que gostem!!!!!

E espero que as minhas PRIMEIRAS PALAVRAS do meu SEGUNDO POST sobre meu PRIMEIRO LIVRO sejam melhores que essas porque tô nervosa com tudo isso e não consegui pensar em nada melhor, obrigada, beijo.

testeA Londres secreta de Neil Gaiman

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Fãs de Neil Gaiman já têm motivo para celebrar: Lugar Nenhum, romance de estreia do autor, chega às livrarias a partir de 17 de junho. A nova edição contém uma introdução de Gaiman, uma cena cortada e um conto exclusivo.

Originalmente concebido como uma série para a TV britânica, o livro apresenta um mundo fantástico, localizado abaixo da capital da Inglaterra. Conhecida como Londres de Baixo, a cidade secreta é habitada por personagens inusitados e cenários fantásticos, características marcantes do autor.

Em Lugar Nenhum, acompanhamos Richard Mayhew e sua vida completamente sem emoção: ele tem um apartamento comum, um emprego decente e uma noiva igualmente normal. Essa normalidade acaba a partir do momento em que ele ajuda uma jovem que encontra ferida na calçada. De um dia para o outro, Richard se torna invisível na cidade que conhece. Sem casa, sem emprego e sozinho, ele vai atrás da jovem para a cidade subterrânea, para tentar recuperar sua antiga vida.

testeTodas as mulheres de Jorginho

A pergunta que mais me fazem sobre a família Guinle é: como explicar o sucesso de Jorginho, um homem baixo e sem maiores atributos físicos, entre tantas mulheres famosas e lindas? Acho que a resposta eu já dei no livro Os Guinle. Mas como andei escrevendo sobre algumas dessas namoradas do playboy, acabei esbarrando naquelas que não foram famosas e desenvolvi uma tese a respeito do assunto.

Hoje, estou convicto de que Jorginho se apaixonou poucas vezes na vida. Talvez ele tenha sido vítima do próprio estilo de vida. Basta uma simples pesquisa nas principais colunas sociais dos jornais cariocas, entre os anos 1950 e 1980, para perceber que ele andava sempre com o mesmo tipo de mulher.

Em 1958, a coluna Ronda Social, do jornal Última Hora, trazia como manchete: “Jorginho não sabe o nome da namorada”. Em 1963, no Baile dos Artistas, ao som da marchinha “Pó de mico”, ele chegou acompanhado de cinco beldades e no meio da festa literalmente acorrentou uma delas para que não fugisse. Ao longo dos anos 1970, suas acompanhantes eram anônimas que só tinham como destaque a aparência, que nunca escapava dos olhares atentos da imprensa: uma “morena enxutinha”, uma “cabecinha loira” uma “linda minissaia”, “trocou sua ‘prima’ por uma uva loira toda vida”.

São inúmeros os relatos de modelos, starlets, lindas moças das mais diversas etnias, nacionalidades e tipos físicos que viviam nas águas da piscina do Copacabana Palace visivelmente esperando para serem fisgadas por ele. Em Os Guinle eu conto como sua mãe, dona Gilda, adjetivou Dolores, a primeira mulher de Jorginho. Outro dia falei com uma ex-namorada do playboy e ela disse barbaridades sobre a segunda esposa dele.

Dizem que na novela O pulo do gato, da TV Globo, de 1978, o autor Bráulio Pedroso se inspirou em Jorginho para montar o personagem Bubby Mariano, pois ele era falido, mulherengo e trambiqueiro. Jorginho nessa época ainda não tinha problemas financeiros e nunca foi trapaceiro. No entanto, nutria um curioso gosto por moças belas, arrivistas e de caráter duvidoso.

testeFernanda Gentil na Intrínseca

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Em 15 de junho, a Intrínseca publica o primeiro livro da repórter esportiva Fernanda Gentil, uma das apresentadoras mais queridas da tevê. Ela conquistou milhares de fãs na cobertura da Copa do Mundo de 2014, da qual foi eleita musa. No vídeo, é uma profissional competente e divertida. De perto, é igualmente engraçada. Nas páginas de Gentil como a gente, transforma suas experiências pessoais num relato adorável.

Para todos os curiosos pelas histórias da jornalista e para aqueles que acompanham as postagens hilárias que a transformaram também em fenômeno nas redes sociais, temos outra novidade. A partir da próxima terça, dia 17, Fernanda publicará, quinzenalmente, textos inéditos no blog da Intrínseca, falando sobre os bastidores da preparação do livro, seu cotidiano e muito mais.

Em Gentil como a gente, Fernanda conta uma história de amores vivida por uma família singular e ao mesmo tempo igual à todas as outras. A protagonista Mocinha (ou Fernanda?) briga e, com a frequência de eclipses lunares, pede desculpas. Quando quer, sabe ser fofa. E mostra-se craque em entender as diferenças entre o masculino e o feminino. Ela mata no peito, sai de impedimento, bota para escanteio e bate um bolão. Porque o que Fernanda mais quer é fazer e ser feliz. Sem firulas. Gentil. Como a gente.

>> Leia mais sobre Gentil como a gente

testeO amor à guerra

Em É isso que eu faço, a fotógrafa Lynsey Addario explica como curiosidade e coragem moldaram sua carreira e vida pessoal mundo afora

Por Marsílea Gombata*

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Cena do Afeganistão enquanto o país estava sob o regime Talibã, maio de 2000.

Uma explosão. A janela do carro estourada, restos humanos espalhados na parte de trás. Pedaços de um cérebro no banco do passageiro, e a tampa interna do porta-malas cravejada com fragmentos de crânio. Poderia ser mais uma entre tantas fotografias documentando atrocidades em zonas de conflito. Mas não. Em 2011, na cidade de Ajdabiyah, na costa da Líbia, a Primavera Árabe havia se transformado em guerra contra o ditador Muammar al-Kadafi. E Lynsey Addario, fotógrafa de guerra havia mais de dez anos, não conseguiu ir adiante. “Quando cobria guerras, em alguns dias eu tinha uma coragem sem limites, mas em outros, como aqueles na Líbia, eu me sentia aterrorizada desde o momento em que acordava”, lembra no início de seu livro de memórias.

Talvez por se tratar de um momento raro, foi a cena marcada por sua fraqueza a escolhida por Lynsey para abrir É isso que eu faço: Uma vida de amor e guerra. O livro, que retrata com minuciosidade um dos trabalhos mais arriscados e importantes do mundo, expõe também a coragem e as privações necessárias para se viver em busca do melhor clique, muitas vezes nas piores situações.

grandeitswhatidoPublicada em fevereiro do ano passado nos Estados Unidos, a obra que chega este mês às livrarias brasileiras é dividida em quatro partes e mescla relatos profissionais com episódios da vida pessoal — como quando o pai de Lindsey sai de casa para se casar com um amigo em 1982 ou a maternidade que a fotógrafa adiou por tanto tempo. A gravidez de Lukas, no entanto, não a impediu de trabalhar em zonas de conflito. Em outubro de 2011, quando a gestação se aproximava da 27ª semana, o The New York Times a enviou a Gaza para cobrir a troca de 1.027 prisioneiros palestinos em troca do soldado israelense Gilad Shalit, sequestrado havia cinco anos pelo Hamas. “Parecia um trabalho bastante simples, mesmo grávida”, lembra Lynsey, que em artigo para a The New York Times Magazine defendeu: “Não há cobertura que uma fotojornalista grávida não possa fazer.”

Em É isso que eu faço, Lynsey relata como foi documentar inúmeros momentos históricos. Ao chegar à recém-libertada Benghazi, na Líbia, conta como sentiu uma atmosfera que lembrava muito a curda Kirkuk depois da queda de Saddam Hussein ou a afegã Kandahar quando caía o governo talibã. As fotos ajudam a testemunhar essa sensação: os rebeldes líbios, que trabalhavam como médicos, engenheiros e eletricistas antes de empunhar AK-47s e pular na traseira de caminhões com lançadores de foguetes e granadas, aparecem atirando contra um helicóptero do governo. Em um cenário no qual o cinza-escuro da fumaça de explosões contrasta com o azul intenso do céu, suas fotos mostram combatentes rebeldes avançando na linha de frente após intenso dia de combate em Ras Lanuf, cidade estratégica considerada um complexo portuário e petrolífero na Líbia.

art #24_blogMulheres afegãs cobrem os rostos no hospital feminino de Cabul, maio de 2000.

Seu cotidiano pautado por conflitos internacionais começara dez anos antes, quando o 11 de Setembro mudou a geopolítica mundial e ela ainda tentava se estabelecer no fotojornalismo. Por ser um dos poucos profissionais com alguma experiência no Afeganistão, ela foi chamada para cobrir a invasão americana no sul da Ásia e depois no Oriente Médio.

Na escolha por abrir mão do conforto e da previsibilidade a fim de correr o mundo escancarando verdades com sua câmera, a americana de ascendência italiana percebeu que o mais importante em uma guerra era capturar de que maneira as escolhas em política externa influenciavam diretamente o cotidiano das pessoas. É por isso que suas fotografias evidenciam o drama humano acima dos desdobramentos do conflito.

Em uma delas, Lynsey oferece um sensível contraste entre liberdade e restrição ao compor um garoto em uma bicicleta com uma mulher vestindo burca pedindo esmolas em uma rua deserta no Afeganistão. A impactante foto do garoto Khalid, por sua vez, mostra um rosto de criança ferido por estilhaços, provavelmente, de bombas da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no Vale de Korengal, fronteira entre Paquistão e Afeganistão.

Kahindo, vinte anos, sentada em casa com os dois filhos, nascidos de estupros, na aldeia de Kanyabayonga, Kivu do Norte, leste do Congo, 12 de abril de 2008.

Depois de cobrir parte da Guerra ao Terror do governo George W. Bush para veículos de prestígio como The New York Times e Life no Afeganistão e no Iraque, Lynsey decide mudar o foco para ampliar seu trabalho para além das exigências diárias da fotografia de pautas urgentes. “Aprendera a trabalhar de maneira rápida e eficiente, mas seria sempre difícil experimentar coisas novas e crescer como fotógrafa atuando sob as condições violentas e restritivas do Iraque. Eu queria ver o que mais poderia fazer e, para isso, precisava tentar uma região diferente”, conta.

Em 2004 viaja para Darfur, que vivia um conflito étnico também motivado pelo acesso à terra e à água. “As guerras com frequência eram causadas tanto por recursos quanto pelo ódio tribal, religioso ou nacional”, lembra. Foi lá, inclusive, que fez uma das mais impressionantes fotos do livro: soldados circulam em uma área de vigília perto de um corpo há muito em decomposição, no qual restos de pele nas mãos agonizam ao lado de um crânio.

Nos anos seguintes, faria viagens frequentes a outros lugares da África, como Kivu do Norte, na República Democrática do Congo, onde passou a retratar vidas marcadas por guerras, como a de Kahindo, com vinte anos e dois filhos nascidos de estupros. A jovem retratada com uma lágrima gritando dor e iluminando sua face havia sido sequestrada e mantida em cativeiro durante quase três anos por soldados ruandeses. Teve um filho na floresta e estava grávida do segundo quando fugiu.

Lynsey

A fotógrafa em ação

Formada em relações internacionais pela Universidade de Wisconsin-Madison, Lynsey cultivou o hábito de fotografar quando ficou um ano fora estudando economia e ciência política na Universidade de Bolonha, na Itália. Mas a grande inspiração para percorrer o mundo em busca de vidas em meio a guerras veio quando visitou uma exposição de Sebastião Salgado, em 1996, em Buenos Aires. “As fotos eram um enigma para mim: como ele capturara a dignidade dos fotografados?”, lembra no livro. “O que eu tinha considerado até aquele momento um simples meio de capturar belas imagens tornou-se algo completamente diferente: era uma maneira de contar uma história. Era o casamento entre viagens, culturas estrangeiras, curiosidade e fotografia. Era fotojornalismo.”

Nascida em Connecticut, Lynsey viveu na Argentina, no México e passou também por lugares como Cuba, Índia e Paquistão. Descobriu que, quanto mais conhecia o mundo, mais sua coragem e curiosidade aumentavam. Além de ter presenciado as ofensivas de tropas americanas no sul da Ásia e no Oriente Médio, foi sequestrada no Iraque em 2004 e na Líbia em 2011, e sofreu um grave acidente de carro no Paquistão em 2009, sete semanas antes de se casar no sudoeste da França com o também jornalista Paul de Bendern.

A trajetória de Lynsey e sua paixão pelo que faz serão transformadas em filme pelas mãos de Steven Spielberg. Depois de uma disputa envolvendo pesos pesados como George Clooney e Darren Aronofsky, a Warner Bros. obteve os direitos para filmar o livro de memórias da fotojornalista vencedora do Pulitzer em 2009, que será interpretada por Jennifer Lawrence no cinema.

>> Leia um trecho de É isso que eu faço

 

* Marsílea Gombata é jornalista e doutoranda em ciência política na USP, onde estuda política social como instrumento de política externa na América Latina. Foi chefe de reportagem no jornal O Estado de S. Paulo e editora no Jornal do Brasil. Atualmente edita o Carta Educação, site de CartaCapital dirigido a educadores, estudantes e interessados no tema.

testeSimulacro

Três horas da tarde, as pedras coruscam na rua. Na seção de história natural, os dinossauros ressonam. Entre os livros infantis, uma menina sonha castelos e fadas. Na contabilidade, no fundo do corredor acarpetado de verde, até os números bocejam de tédio enquanto os romances escondem longas tardes numa praia remota e a brisa, presa entre a capa e a contracapa, não leva o perfume do mar até ela.

Ela olha o relógio, três horas da tarde. Dentro do shopping, o ar-condicionado engana o verão. As estações estão nas páginas dos livros, não nesse emaranhado de caminhos ladrilhados, de vitrines e objetos inúteis.

Dentro da livraria, no corredor dedicado aos autores franceses, ela estica sua mão e tira um livro da prateleira. Sursis. Uma velha edição de Sartre que havia muito não se achava. Nessa livraria moderna e informatizada, entre os lançamentos da semana e os mais vendidos, aquele exemplar distoa. Mas como foi parar ali? De que gaveta se furtou, de que prateleira caiu? De que sala, de que biblioteca, de que mãos? Ela folheia o livro. Também na história de Sartre faz calor e alguém espera seu destino. Assim como Mathieu está à beira de um horrível futuro, o que a aguardará?

Três e dez e ele não veio. Marcou numa livraria para esperá-lo com calma — em que outro lugar teria tão agradável companhia? Na seção de culinária, alguém procura uma receita de creme brullé; entre os norte-americanos, Philip Roth disseca Newark; não há uma seção para literatura polonesa, mas ela encontra Singer nas edições de bolso.

Três e dezoito, pensa em sua mãe. Talvez tivesse sido melhor combinar o encontro num bar. Seria mais fácil. Duas taças de vinho branco e meia dúzia de frases. Se ele queria ir embora, que fosse. Não haveria de ser ela a segurá-lo ali naquela cidade, naquele casamento.

Três horas e vinte e cinco, e no almoxarifado chegam caixas vindas de São Paulo. Um homem paga com seu cartão Visa os dois volumes de Dom Quixote.

Três horas e trinta e oito, para além das paredes, dos carpetes e dos livros de autoajuda, a metrópole faísca sobre o sol. Ali dentro, um senhor busca por Borges, seção literatura latino-americana. Ela volta pelos corredores. Onde estava mesmo? Ah, autores franceses. Seus dedos correm pelas lombadas coloridas. Por fim, encontra o velho Sursis, o exemplar surrado. No caixa, dizem-lhe: “Este livro não está catalogado, senhora, alguém deixou-o por aí, perdeu-o…”.

Ela recorda que ele costumava ser bastante pontual, mas muita coisa mudou desde então. Talvez devesse ter marcado num parque. Numa boutique. Num sinal de trânsito. Mas de qualquer modo, ele não viria. Olhou o livro órfão e sorriu: há sempre alguém perdendo alguma coisa em algum lugar deste mundo.

testeA playlist de Josh Malerman para Caixa de pássaros

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Desesperador, soturno e envolvente. Caixa de pássaros rapidamente se tornou um sucesso entre os leitores brasileiros, ganhando a cada dia novos leitores que se recusam a abrir os olhos frente a um horror impossível de descrever.

Para ajudar aqueles que ainda não leram o livro de estreia de Josh Malerman a entrar no clima, pedimos para o autor montar uma playlist que combinasse com a jornada de Malorie e seus filhos.

O resultado é, como esperado, uma coletânea de temas sombrios, trilhas sonoras de filmes de terror e suspense. Confira no spotify:

Além da playlist, Josh indica também a trilha sonora de Força assassina (The Boogey Man), filme cult de terror de 1980:

testeIntrínseca ganha Prêmio FNLIJ por melhor tradução de livro de Neil Gaiman

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A Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil anunciou os vencedores do Prêmio FNLIJ 2016.  João e Maria, de Neil Gaiman, foi o grande vencedor da categoria de melhor tradução e adaptação de reconto. A obra, publicada em 2015, revisita a história clássica dos irmãos Grimm, com ilustrações de Lorenzo Mattotti, e foi traduzida por Augusto Calil.

Além do prêmio de melhor tradução, João e Maria recebeu o selo Altamente Recomendável. “Ficamos muito felizes com a premiação. Neil Gaiman reconta o clássico João & Maria com mestria e resgata o clima sombrio da história original.  Augusto Calil, com muita habilidade, conseguiu trazer para a edição brasileira a mesma atmosfera assustadora”, comemora Cristhiane Ruiz, editora de ficção jovem.

O livro sem figuras, de B.J. Novak, também recebeu o selo Altamente Recomendável concedido pela fundação, que seleciona anualmente os melhores livros para indicação a crianças e jovens.

Os certificados de premiação serão entregues na cerimônia de abertura do 18º Salão FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens que acontece entre os dias 8 a 19 de junho, no Rio de Janeiro. A Intrínseca terá um estande com uma seleção especial de títulos e materiais exclusivos voltados para o público infantil, juvenil e professores.

testeUm milhão de beijos perdidos

Ela chegou, sorrateira e bela, para me encontrar. Flutuou pelo quarto, em zigue-zague, sem se impor, mas fazendo-se notar. Suas vestes eram escuras, pesadas. Mesmo assim, mostrava leveza ao andar.

Ela sempre sabe a hora, só existe a hora certa. E ainda não era a hora, era quase a hora. Entendia bem a arte de esperar. Encontro marcado, muitos encontros marcados, e cada compromisso tinha o tempo exato para se concretizar.

Há quem nunca pense nela, há quem pense nela o tempo todo e, numa prova de deselegância, faça-a chegar abrupta e sem se preparar. Agora que a vejo de perto, cada vez mais perto, tento, em vão, decifrar seus contornos. Quero me lembrar.

A essa dama muito sábia é impossível enganar. Não tolera atrasos. Por vontade própria ou pelo mais completo acaso, encontros como este podem até se adiantar, porém nunca – repito: nunca – se adiar.

Para mim, foi sempre como se ela nunca existisse, admito que sempre a ignorei, nela jamais pensei. Eu e tantos outros somos assim. Nos últimos tempos, soube que estava próxima. No entanto, apesar de tudo, de toda a dor, não ansiei por sua presença.

Eis que ela chegou. E veio a caráter, pois é dia de festa. Não tem pausa, não tem feriado, faz o que manda o seu relógio pontual. Que bom, os fogos já começaram, vejo as luzes cor-de-rosa pela janela. Inácio ganhou a aposta. Disse que eu veria o Ano-Novo.

Ele olha para mim e diz alguma coisa. Seu hálito é doce. Cheira a bala soft de caramelo, aquela bem grudenta, e milk-shake do Bob’s. Inácio prometeu-me um milhão de beijos se eu ficasse. O único homem desta cidade que nunca beijei, o amor da minha vida.

Inácio, que sempre foi menino, agora se tornou homem. Sorte que o garoto de olhos grandes, ainda bem, insiste em fazer seu retorno, justamente agora. Ele se encanta com as cores do foguetório da orla, se distrai.

O som dos fogos fica, para mim, cada vez mais distante. Ela se levanta, sai de seu canto e se aproxima. Quero resistir só um pouco, porém tenho medo de que me leve de repente. Não quero ser teimoso, quero me render, ir em paz.

Os estouros lembram-me da infância, pipoca que arrebenta na panela. Os primeiros minutos do ano explodem como derradeiros grãos de milho que insistem em se metamorfosear mesmo depois que a panela já saiu do fogo.

Não estarei aqui para ouvir o aparelho que monitora meus batimentos cardíacos mostrar um traço e apitar. Não poderei consolar Inácio em seu desespero. Não verei os enfermeiros correrem quarto adentro e, inerte, não lhes darei chance de me ressuscitar.

Oba, outra pipoca estourou. Acho que é a última. Que privilégio, mais um segundo para mim. De vida. E mais outro. Então ela toca meu braço e vejo seu rosto. Estende-me a mão e eu aceito. Seus olhos são vazios, tristes, mas estranhamente compassivos.