Pedro Gabriel

Agora o mundo mora em mim

18 / agosto / 2020

Impedido de sair, eu trouxe o mundo para dentro de casa. Metaforicamente, óbvio. Criei um simulacro dos espaços que sempre gostei de frequentar. Arquitetei um novo lugar com a memória recente da antiga rotina alterada por motivos pandêmicos. O mapa-múndi foi redimensionado. Tudo se encolheu. Agora o mundo mora em mim.

Meu apartamento é um satélite em órbita ao redor do incerto. Rodeado de estrelas, angústias e silêncios. O vazio sempre a um passo de onde estou. A sensação é de que não há mais nada após a porta do meu casulo. Pela lente do olho mágico, só observo o desencanto. Em algum momento, a vida exterior perdeu sua magia. Eu me perdi?

A barbearia do Seu Elias agora é vizinha do meu lavabo. Lá, vou uma vez por mês. Faço a barba. Acerto o bigode. Aparo as pontas de um cabelo que já se apossa do meu rosto há meses. Volumoso, ele começa a ondular. Mais dois ou três meses confinado, tenho certeza de que terei surfistas dropando nessas ondas capilares. Junto com eles, virá o verão. Grãos de areia, sol gigante, cadeiras reclináveis superfaturadas, frescobol, criança perdida, aplausos dos banhistas, criança encontrada, mais aplausos dos mesmos banhistas, as lágrimas da mãe e, claro, o grito incansável dos ambulantes. 

Olha o Maaatte! 

Meu bar preferido agora faz fronteira com a cozinha. A rua Marquês de Abrantes parece ter escapado do bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e encontrado conforto bem aqui, em São Paulo, nesse corredor que separa os dois cômodos do banheiro. Me vê um chope e um pernil com queijo sem abacaxi, por gentileza, Agenor. Em noites mais saudosas, eu juro, é possível enxergar todos os clientes do Café Lamas agitando a monotonia de suas vidas na pequena varanda da sala principal. O sofá é o lugar mais disputado. Somente com reserva, senhora. Desculpa. Obrigado pela compreensão

Nem sempre a clientela tem razão…

A charmosa livraria agora está localizada no armário do quarto de visitas. Não há mais hóspedes nesses tempos inóspitos. Ninguém dorme aqui desde o ano passado. As palavras podem até descansar em paz, mas meu silêncio entra em conflito. Dizer ou não dizer, eis a razão de ser um tanto aflito. Discorda? Me dê outro motivo!

O cão do meu vizinho agora passeia no parque que existe no meio do hall. Ele urina na minha perna e abana o rabo com uma sincronia invejável. Que alegria deve ser mijar nos pés dos outros, né, doguinho? Imagino que seja terapêutico. E vou além: acho que fazer xixi em postes imaginários evitaria cagar tanta regra nos posts alheios. Às vezes, sinto vontade de colocar uma coleira na cólera dos haters e levá-los para passear até encontrar a definição de empatia, respeito, amor ou ternura. Sei que isso soa quase impossível, mas estou disposto a dar o primeiro passo. Ainda temos um longo caminho pela frente…

Eu me perdi?

Agora que o mundo mora em mim talvez seja mais fácil me encontrar.

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