Não foi Fernando Pessoa quem inventou o desassossego, mas é impossível desassociar desassossego do Pessoa, das pessoas. Escrever desassossego me acalma. Sei lá se é a sua sonoridade — palavra bonita de se ver, palavra agradável de se ouvir —, mas há um exagero que me agrada na sua pronúncia, na sua grafia e até no seu próprio significado. A letra S em demasia presente na sua composição faz com que eu me ausente de mim por alguns instantes. O desassossego é hipnótico.
Não sei se esse excesso de consoante tem alguma explicação terapêutica, mas esse desassossego do qual estou falando tem quase o formato de um divã — uma poltroninha esticada em alguma página até então vazia do meu caderno de lembranças (lambanças?). Talvez por isso, a palavra desassossego parece esconder um pedido de socorro — o grito camuflado de todos aqueles que precisam de ajuda:
dessasS.O.Sego.
Depositar meus olhos sobre esse termo escrito equivale a uma sessão completa de psicanálise. Eu me alongo por cerca de cinquenta minutos nesse desassosseguinho sem encosto feito de espuma e angústia, revestido de couro sintético e algumas palavras artificiais. Afinal, nem tudo o que é dito soa real. A espuma silenciosa traz um leve conforto, como quem tenta me dizer — sem o peso de uma sentença — que falar não deveria ser tão desconfortável assim.
Mas é.
A palavra desassossego tem ouvidos e eu me escuto nela com certa frequência. Ela parece conter todas as inquietações de todos os fernandos de todas as pessoas de todas as línguas de todos os tempos de todos os mundos. Ela me faz pensar em um tanto de coisa. Ela me traz e me tira tantas verdades, tantas mentiras… E eu me atiro tantas e tantas vezes para fora desse casulo silencioso. Me projeto no chão, sou meu holograma. Olá, drama! Estou cheio de realidade, de ilusão (desilusão?). Sou um projétil povoado da pólvora de todos os meus sonhos não realizados.
Outro dia, experimentei tirar todos os S do meu desassossego. Em outras palavras: desossei o desassossego. E o que eu encontrei? Este verso:
Dê ao ego.
Desde então, dou ao meu ego um pouco de agitação. Ele, como quem tenta me salvar do medo, me dá lembranças. E elas têm rosto, têm dor, têm odor e chegam sempre incompletas — como se ainda esperassem um pedido de perdão para desaparecerem por completo. Não perdoar é não esquecer.
Me vem o dia em que eu, sem querer, estiquei a perna e derrubei minha irmã caçula na sala do apartamento em Laranjeiras. Um gesto involuntário que custou algum remorso a mais para mim e dois dentes a menos para ela. Sorte que os dentes dos adolescentes costumam crescer novamente. Eu não saberia mastigar essa culpa.
Me vem o dia em que mijei nas calças durante uma aula de matemática porque eu fiquei com vergonha de levantar a mão e pedir ao professor para ir ao banheiro. Me senti um cão inútil marcando um território que ninguém precisa conquistar. Talvez por isso até hoje eu odeie matemática. Os números têm cheiro de urina. A última fileira da sala 3B tem cheiro de urina. Uma criança silenciada tem cheiro de urina.
Me vem a imagem do vira-lata de três patas que eu e minhas irmãs encontramos abandonado numa lixeira perto de casa. Nossa ternura foi uma espécie de quarta pata, o apoio que ele precisava para abanar o rabo e latir seu resto de vida com dignidade. O amor às vezes é esse membro invisível.
Me vem também a última vez que nos vimos. E aquela carta que nunca teve resposta. E o seu nome. Esse nome que não pronuncio há décadas. Seu nome agora não passa de um eco seco no meu esôfago. Me alimentei por um bom tempo das suas ausências. Mas, afinal, quem é você?
(outro desassossego?)
Fim da sessão.
Não conhecia esse blog. Suas cronicas são melhores que os guardanapos …
Você como sempre PHODDA! Texto perfeito.
Desassossego, talvez não seja tão dramático, pode ser a ponte entre o querer e o f
azer (kkk).