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Filhos preferidos, maus-tratos e violência doméstica marcaram as investigações do caso

7 / outubro / 2022

A verdade por trás da família “perfeita” de Flordelis

“O filho mais velho foi atingido por uma panela de pressão na cabeça pela própria Flordelis. Ele tem até hoje um afundamento no crânio.”

 

Certa vez, um dos filhos da ex-deputada federal Flordelis entrou em uma crise de abstinência de drogas e foi atingido na cabeça por uma panela de pressão pela parlamentar — ele tem até hoje um afundamento no crânio por conta desse episódio. Longe de ser um caso isolado, agressões físicas e violência doméstica faziam parte da rotina de uma família tida pela mídia como exemplo de caridade e assistencialismo.

 

Quando tudo começou

Em 1991, a casa de Flordelis e sua mãe, Carmozina, era um ponto de encontro de jovens da comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Crianças pequenas eram deixadas pelos próprios familiares sob os cuidados da “Mãe Flor” e adolescentes eram atraídos pelo trabalho do “evangelismo na madrugada”. Aos poucos, formou-se a extensa e famosa família da pastora que, em alguns anos, afirmaria ter mais de 70 “filhos” — mesmo que a quantia exata continuasse uma incógnita por muitos anos.

Com o crescimento do número de crianças e jovens sob o mesmo teto, Flordelis dividiu sua prole em dois grupos: o chamado “núcleo familiar original” — composto pelos filhos biológicos da pastora e pelos primeiros jovens a chegar na casa, entre eles Anderson, que viria a se casar com sua “mãe” e ser assassinado pela própria família — e os outros.

Nos anos seguintes, Flordelis e Anderson, ajudados pelos “filhos” mais crescidos, começaram a procurar crianças no entorno da Central do Brasil, área muito pobre e negligenciada do Rio de Janeiro, para aumentar sua prole. Logo, a casa estava lotada e os “filhos” mais velhos, biológicos e afetivos, passaram a se revezar na assistência às crianças e aos bebês.

 

Foragidos

Em 2002, após participar de várias matérias e programas de TV, a história da “Mãe Flor” e sua excêntrica família ganhou projeção nacional. Se, por um lado, essas reportagens foram essenciais para conquistar o apoio financeiro de personalidades e empresários sensibilizados pela situação da família, por outro, elas chamaram a atenção da Justiça.

Responsável por fiscalizar os processos de adoção no estado do Rio de Janeiro, o juiz à frente da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso determinou uma investigação rigorosa sobre as crianças supostamente adotadas por Flordelis. Pressionada pelas constantes visitas dos agentes do governo, Flordelis decidiu fugir e levou consigo toda a família — sem ter para onde ir, o grupo foi morar embaixo de um viaduto.

Após um acordo judicial e contando com a ajuda de empresários, a família conseguiu se mudar para uma nova casa e, do dia para a noite, passaram a ter uma residência bem diferente da que estavam acostumados. Se, no passado, crianças e adultos dormiam amontoados pelo chão e até sob a mesa da cozinha, agora a família tinha uma casa bem equipada, na qual cada morador tinha sua própria cama, individual ou em beliche, e havia comida em abundância — mas não para todos.

 

Por trás da fachada

De acordo com depoimentos, os “filhos” eram informalmente divididos entre os privilegiados e os não privilegiados, e havia uma grande diferença na forma como eram tratados. Enquanto os protegidos ganhavam roupas e celulares novos, os outros recebiam os pertences que eram descartados. Na casa da família, as geladeiras eram separadas: a da cozinha da casa principal não continha guloseimas; já a do quarto de Flordelis e Anderson era abarrotada de iogurtes e chocolates, mas só os filhos prediletos tinham acesso ao aposento.

Além disso, os “filhos” não privilegiados dormiam em cômodos menores, compartilhados por várias pessoas, ao passo que os privilegiados ficavam em quartos com poucos integrantes. Ainda, os filhos adotados tinham hora para dormir e acordar, porque precisavam fazer as tarefas da casa e ir para a escola, já os biológicos acordavam ao meio-dia e não ajudavam nos afazeres domésticos.

Além da diferença de tratamento, depoimentos apontam que “corretivos” físicos eram uma constante na casa e incluíam colocar pimenta na boca de quem falasse palavrões ou gírias, bater com a ponta do salto alto do sapato na cabeça das crianças e surras de vara de goiabeira, de cinto, vassourada e chinelada.

Uma das filhas afetivas de Flordelis alega já ter sido queimada com o ferro de passar roupa por um dos filhos privilegiados da pastora. Outro depoimento chocante inclui o relato de que um dos “filhos” da ex-deputada teria sido apunhalado com uma tesoura nas costas após uma briga dentro da casa e, para não chamar a atenção da mídia, o rapaz foi aconselhado pela pastora a não ir ao hospital e nem prestar queixa na polícia.

Um dos episódios mais polêmicos envolvendo Flordelis aconteceu após uma briga entre dois irmãos afetivos por um boné. Para acabar com o desentendimento entre os dois jovens, ela teria cortado o objeto em pedaços e os obrigado a comer.

A existência de tratamentos diferenciados com os “filhos” gerava ressentimentos e desequilíbrios importantes nas relações familiares. Contudo, em nome da preservação do Ministério Flordelis, era preciso manter as aparências. A fachada de “família perfeita” foi destruída após as investigações do assassinato de Anderson, em 2019, apontarem a ex-deputada federal Flordelis e alguns de seus filhos como os supostos mandantes do crime.

 

Em O plano Flordelis, Vera Araújo reconstrói a trajetória de uma das personagens mais complexas e contraditórias do cenário político e religioso brasileiro. Em um primoroso trabalho de apuração, a premiada jornalista investigativa detalha o caso desde suas origens familiares até os bastidores do julgamento da morte do seu marido.

 

Leia também: Um crime real que parece ficção e Sexo, dinheiro e poder

 


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