Por Mayra Sigwalt*
“Então não existe mais dia do índio?” Sinto dizer, mas nunca existiu.
A tal comemoração no dia 19 de abril sempre foi momento de desconforto para pessoas indígenas e, para as que ainda estivessem na escola, motivo de constrangimento. Um dia para pintar o rosto das crianças com tinta guache, fazer um “cocar” de papel e ensinar sobre esses supostos “índios” que viviam pelados e existiam há muitos, muitos anos. Nunca foi um dia para celebrar os povos indígenas, para celebrar nossa resistência por mais de 500 anos, nossa diversidade étnica e cultural, nossas pautas relevantes para a política nacional. Não, o dia do índio sempre foi uma paródia muito sem graça.
Desde o ano passado, graças à ex-deputada e agora presidenta da FUNAI, Joenia Wapichana, temos o Dia dos Povos Indígenas, que parte de um ponto de respeito às multiplicidades e à autodeterminação. Pois o que sempre faltou no Brasil em relação aos povos indígenas foi respeito. Respeito não é algo simplesmente a ser garantido por meio dos direitos, mas também através da educação. Cabe a todes nós nos educarmos não só as crianças, mas também os adultos, para entender que esse território em que vivemos pertence a mais de 300 povos, que falam mais de 250 línguas.
É interessante, para não dizer triste, ver que povos indígenas no mundo todo precisam enfrentar as mesmas batalhas. Sejam os Guarani-Kaiowaá aqui no Brasil, constantemente sofrendo invasões, violência e violação de seus territórios; sejam os Kanaka Maōli no Hawai’i, pedindo que os EUA os libertem de seu sequestro e respeitem sua soberania como nação independente; sejam os Cree, no Canadá, revivendo o trauma deixado pelos Internatos Indígenas ao escavar centenas de corpos de crianças que foram arrancadas de suas famílias e nunca retornaram, ou até mesmo os que retornaram, mas nunca mais conseguiram falar suas línguas maternas, extirpadas com tanta força de seu espírito quanto eles foram arrancados dos braços de suas mães. Em A Filha do Guardião do Fogo, livro de Angeline Boulley, vemos a impotência de mulheres Ojibwe para combater a violência direcionada a elas e a inação do Estado que devia protegê-las. São sempre as mesmas dores.
No livro A maravilhosa trama das coisas, Robin Wall Kimmerer, doutora em botânica, mostra como a sabedoria ancestral de seu povo (Potawatomi) só teve algum respeito no meio acadêmico quando ela passou a explicá-la pela linguagem do não indígena. É um livro científico e extremamente emocionante, porque Robin mostra que essas duas coisas nunca estiveram desconectadas.
Com o nosso planeta em colapso, esses ensinamentos são mais do que necessários: são imprescindíveis para nossa sobrevivência. No entanto, é importante lembrar que esse conhecimento não existe sem os povos indígenas. Nós esquecemos como respeitar a terra, e é isso que ela vem nos lembrar, guiando-nos por esse caminho tão antigo.
Autores indígenas, sejam cientistas ou não, são essenciais para transformar a forma como têm sido vistos os povos originários do Brasil e do mundo. É essa educação que vai mostrar por que nunca houve “dia do índio” aqui. Porque “índios” não existem. Aqui há Tupinambá, Laklãnõ, Kaingág, Potiguara, Muduruku, Xururu, Kariri, Pankararu, Tupiniquim, Kaiapó, Yanomami, Omágua e tantos outros… Chega de paródias e “homenagens” vazias que em nada contribuem. Já é passado o momento das nossas vozes serem ouvidas, antes que seja tarde.
*Mayra Sigwalt é descendente do povo kaingang, formada como roteirista de cinema, escritora, produtora de conteúdo e criadora do Turista Literário. Trabalha há 7 anos falando sobre literatura na internet e criou os projetos #AbrilIndigenaLit e o #AgostoIndígenaLit para incentivar as pessoas a conhecerem literatura indígena. Publicou sua primeira novela “O que Encontramos nas Chamas” em 2020 e escreve histórias para que outros como ela possam se ver na literatura.
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