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Escritora negra com muito orgulho, prazer!

25 / julho / 2023

Quando comecei a publicar meus contos, lá em 2017, não imaginava que um dia estaria aqui, lançando meu primeiro romance por uma grande editora. Escrevo histórias com protagonistas negras que gostam de garotas, assim como eu, e não costumava ver muito esse tipo de narrativa por aí. “Quem leria o que escrevi?”, era o que me perguntava a cada história finalizada. Mas agora consigo enxergar que o que escrevo não fala só sobre mim. Sou uma mulher negra, com vivências particulares, mas bem no fundinho de cada história há algo que só existe porque outras vieram antes de mim.

Gosto de pensar que, com o que escrevo, consigo honrar não somente a minha ancestralidade — minha avó, minha mãe, minhas tias e quem veio antes delas —, mas também construir algo compartilhado, uma sensação de pertencimento e de comunidade. Como se, de alguma forma, minhas histórias também falassem sobre todas as mulheres negras.

Um traço até você, meu romance de estreia publicado pela Intrínseca, acompanha a história da Lina e seu sonho de ser ilustradora. O caminho dela cruza com o da Elza, uma garota linda e inspiradora, motivada pelo desejo de contar o mundo através da arte das palavras. Mesmo que a premissa não tenha surgido de primeira, acabei construindo uma história sobre mulheres negras e seus sonhos, suas resistências, seus desejos mais profundos e, ao mesmo tempo… escancarados. E não é que tudo isso dialoga um pouquinho com a minha vida também?

Além disso, fala sobre minha tia que é professora e lançou (e lança) seus livros infantis; sobre minha avó, que trabalhou como faxineira e amava ler. Antes de partir, ela escreveu um livro contando suas memórias; sobre minha tia, professora universitária, que adora seriados americanos de ficção científica e repassava os enredos para mim; sobre minha mãe que, também professora, criava histórias com tramas incríveis para me ninar — nunca vou me esquecer de uma em específico, a das bruxas que roubaram a água da piscina da casa de um menininho. Sem falar nas tardes de domingo no sofá da minha avó, com muitas risadas, fofocas e memórias. Contar histórias sempre esteve no sangue da nossa família, mesmo que nem sempre fossem escritas. 

Um traço até você é uma obra de ficção, mas seria injusto da minha parte dizer que tudo é fruto apenas do meu trabalho. O que escrevi, sim, é meu. Tudo ali veio de mim. Mas quem eu me tornei, e quem eu me torno quando consigo contar uma história, vem da minha família, daquelas mulheres que existiram antes de nós. Ainda que não consiga ir muito longe nas raízes da nossa árvore genealógica, quero acreditar que há algo nessa jornada familiar que vem de antes, muito antes. Certas frases que só a gente conhece, o jeito de preparar alguns chás, o tempero tão familiar…

Acho que isso é o que me faz ter mais orgulho de escrever protagonistas negras. Mesmo que a sociedade por vezes ainda insista em repelir um livro com duas garotas negras na capa, mesmo que algumas pessoas considerem as histórias de amor entre mulheres negras desinteressantes, mesmo que a jornada de autodescoberta dessas mulheres e garotas seja negligenciada, não consigo me ver contando outro tipo de história.

E você pode estar pensando: “Não é muita ambição tentar contar todas as histórias?” E eu respondo: não estou contando todas as histórias. Seria audacioso demais afirmar que estou abarcando a história de todas as mulheres negras. Somos muitas, e nos restringir ao que eu posso fazer não tem sentido. O que quero dizer é que, sendo uma escritora negra, carrego um histórico, algo que me precede. Além disso, as histórias que escrevi me ajudaram na minha própria trajetória.

Quando comecei a publicar meus textos, eu não sabia, mas existia ali uma vontade de contar para o mundo alguns dos meus sentimentos mais íntimos. “Entre estantes” foi meu primeiro conto publicado, e, antes de Um traço até você, minha história mais famosa. O que as pessoas não sabiam é que ao colocá-la no mundo, eu também estava contando que sou uma mulher negra que gosta de garotas. O drama da protagonista também era um pouquinho meu.

E você vai dizer: “Mas não é comum escritores colocarem um pouco da vida deles nas histórias?” E eu vou responder: sim, é. Não fujo disso! Só que quando recebo mensagens de leitores dizendo que minhas histórias os ajudaram, que essas pessoas nunca se viram representadas, e que o que eu escrevi contribuiu para uma jornada de autodescoberta, também devo ser sincera e contar que o mesmo aconteceu comigo. Com Um traço até você, vou além e digo que contar sobre os medos, inseguranças e sonhos da Lina — que são só dela e, de certa forma, estão muito longe de mim — me ajudou em vários aspectos da minha vida.

O que gostaria de dizer é que mesmo que cada uma das minhas histórias tenha uma nova protagonista, um novo nome, um novo amor e um novo sonho, eu não quero esconder que escrever sobre garotas negras é um desafio, e também uma responsabilidade. Elas são importantes, não só para mim e por tudo o que já falei, mas também porque sei que, ao contar suas histórias, posso estar falando sobre várias outras garotas negras por aí, com desejos, sonhos, medos e muita vontade de ser feliz. E desconfio que toda escritora negra se sente exatamente assim.

Termino este texto agradecendo, em primeiro lugar, às minhas protagonistas, Lina, Elza e a todas as outras, vocês têm um lugarzinho dentro de mim muito especial e que ninguém nunca vai entender. E, em segundo lugar, ao que elas representam. Às mulheres negras que estão perto de mim, às que estão longe (em minha linhagem e de outras), às escritoras negras que pavimentaram e continuam pavimentando o caminho para que eu chegasse aqui, muitas delas esquecidas e que mereciam reconhecimento. A todas as mulheres negras que têm sonhos.

Espero que com Um traço até você eu honre nossos passos e o legado de muitas! 

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