Meus velhos verões

Por Leticia Wierzchowski

31 / outubro / 2014

coluna 32_ post

Sempre resta dentro de nós alguma coisa da criança que fomos. Nem que seja uma lembrança, uma sensação ou um medo. Esses pequenos retalhos do nosso passado talvez sejam o que de mais genuíno nos acompanha e, por genuíno, mágico. A literatura se alimenta muito dessas memórias, e alguns dos meus livros prediletos se passam em antigos balneários da infância do personagem.

Com o verão, é que uma parte importante da menina que eu fui ressurge, feito uma flor que tem época para florescer. Talvez os melhores momentos da minha infância se tenham passado na praia, na cidadezinha de veraneio que eu frequentava com meus pais e que hoje somente existe, cálida e perfeita, no mais recôndito do meu eu. Uma velha cidreira onde as águas não eram poluídas, nem as famílias tinham seus carros arrombados enquanto tomavam seu banho de mar. Naquele tempo, aliás, ninguém ia de carro à praia. O carro saía da garagem para o supermercado. A padaria era, no final de cada tarde, tarefa das crianças e, portanto, vencida a pé. O pão de meio quilo, lembram?, chegava invariavelmente sem o bico. Quentinho, o velho pão da padaria Nivi era comido pelo caminho, naqueles tempos em que os caminhos não ofereciam mais perigo às crianças do que qualquer brincadeira no quintal.

Faz muito que deixei aquela praia, e assim ela tornou-se indestrutível na minha memória mais festejada. O velho chalé de madeira azul que meu avô Jan construiu nos primórdios do balneário, e que certa vez quase foi levado pelos ares durante um temporal, vive, lindo e impecável, na minha alma — e talvez seja essa a existência mais sublime que se possa almejar.

As bandeiras eram uma euforia à parte. Muitas bandeiras vermelhas para duas ou três amarelas, devidamente festejadas em longas horas de banho. Bandeira branca, essa só na velha marchinha de carnaval, e nas histórias da minha tia-avô, que dizia ter visto muitas bandeiras brancas nos seus áureos tempos, quando ir à praia no sul do sul do Brasil era aventura para poucos.

Houve uma vez um verão e suas histórias. Seus baldinhos de praia, suas forminhas de plástico, e aquele eterno vento lambendo as orelhas da gente… Naquele tempo, uma bruxa vivia no sótão da casa, e a pior coisa que podia acontecer era uma certa vontade de fazer pipi no meio da noite. Quando sucedia tal inconveniência, a solidariedade instalava-se: todos os primos iam juntos ao banheiro, e sempre alguém ficava de vigia na porta. A tal bruxa do sótão nunca ousou aparecer. Mas também, naquele tempo, até as bruxas eram boazinhas.

* Da memória para a literatura, duas histórias que começam num verão da infância: O mar,de  John Banville e O destino de um homem, de Somerseth Maugham.

LETICIA WIERZCHOWSKI é autora de Sal, primeiro romance nacional publicado pela Intrínseca, e assina uma coluna aqui no Blog.

Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Um de seus romances mais conhecidos é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Leticia escreve às sextas.

VER TODAS AS COLUNAS

Comentários

2 Respostas para “Meus velhos verões

  1. AMO OS LIVROS DE LETÍCIA, A EXEMPLO DE A CASA DAS 7 MULHERES E O CRISTAL POLONÊS… MARAVILHOSOS. SUCESSO SEMPRE!

  2. BELO TEXTO, MERECE SER LEVADOS ÀS SALAS DE AULAS.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *