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Quem são as figuras históricas reais que inspiraram a série “A Guerra da Papoula”?

30 / novembro / 2023

Por Leticia Simões e Mário Lima

A Guerra da Papoula, A República do Dragão e A deusa em chamas são obras que compõem uma trilogia que conta a vida de Rin, uma órfã que entra para a academia militar mais prestigiada de seu país e com muita dificuldade, um mestre excêntrico, xamanismo e psicotrópicos, desenvolve os poderes de uma deusa antiga e chega à beira da loucura para defender seus ideais.

Nosso primeiro texto sobre a série de R.F. Kuang, considerada uma das 100 melhores fantasias de todos os tempos pela revista Time e uma experiência única pelo Washington Post,  apresentou uma série de eventos históricos que ajudaram a construir a história de Rin e do Império Nikara. Agora, nesse segundo artigo,  vamos apresentar figuras históricas que acreditamos terem servido de inspiração para alguns dos mais interessantes personagens da série, além de trazer conceitos e discussões sobre temas que perpassam as páginas dos livros e que são pertinentes ao debate político em nossa sociedade.  Fica aqui o nosso ALERTA DE SPOILER e o nosso muito obrigado a você que nos lê!

Sun Tzu

No universo de Kuang, Rin estuda os Princípios da guerra de Sunzi na academia militar de Sinegard, durante suas aulas de estratégia com o Mestre Irjah. O livro de Sunzi, que é o nome chinês para Sun Tzu, e o próprio personagem são temas que aparecem ao longo dos dois livros, principalmente nos planos e estratégias de Chen Kitay, amigo de Rin.

Acredita-se que Sun Tzu tenha sido um grande estrategista chinês, responsável pela elaboração do tratado mais famoso de estratégia militar, A arte da guerra, utilizado até os dias atuais, implementado não somente no meio militar, mas também na área de negócios.

Rin e Mao Zedong

Ao final do segundo livro, A República do Dragão, Rin começa a enxergar os conflitos do Império Nikara não como um embate entre as doze províncias ou entre o norte e o sul, mas sim entre aqueles que têm recursos e os que não têm, entre a aristocracia privilegiada e a pobreza extrema.

Mao Zedong, anteriormente conhecido no Ocidente como Mao Tsé-Tung, foi o líder chinês mais importante do século XX, responsável por levar o Partido Comunista ao poder e dar fim à Guerra Civil Chinesa em 1949. Foi um homem com visões duras e utilitaristas, que reuniu os trabalhadores do campo e a base proletária de seu país, reformulando a nação chinesa e construindo a República Popular da China. Enxergando as principais divisões do mundo não como um embate entre norte e sul, mas sim como um conflito entre proletários e capitalistas, a figura e a trajetória de Mao Zedong serviram de inspiração para a protagonista da trilogia. Segundo a autora, na série, “eu estava interessada em entender como alguém poderia ir de um camponês sem estudo a comandante de uma nação. Queria entender como monstros são formados. Como uma única pessoa pode se tornar responsável por tanto, pelo destino de milhões?”

Vaisra e Chiang Kai-shek

Ao longo do segundo livro, algumas passagens nos dão a entender que Yin Vaisra, líder da Província de Dragão, é baseado em Chiang Kai-shek. Sua aliança com os hesperianos, assim como seu casamento com Yin Saikhara, dão pistas sobre essa correlação entre ficção e vida real. No terceiro livro da série, The Burning God (que será publicado no Brasil no segundo semestre), o embate entre Rin e Vaisra é iminente, com a jovem liderando os camponeses contra o chefe militar, uma alusão entre o conflito entre Mao Zedong e Chiang Kai-shek.

Chiang Kai-shek foi o líder do Partido Nacionalista Chinês e presidente da República da China durante a insurreição de Mao Zedong. Após sua derrota na Guerra Civil Chinesa, Chiang Kai-shek e demais membros do Kuomintang, seu partido, fugiram para Taiwan. Outro traço importante de sua gestão foi o relacionamento próximo com o Ocidente. Sua esposa, Soong May-Ling, foi estudar nos Estados Unidos e tinha vínculos profundos com os países ocidentais, assim como Yin Saikhara na trilogia de Kuang.

Moag e Ching Shih

Ao ler A República do Dragão, é impossível não traçar um paralelo entre Ching Shih e a astuta pirata Moag, líder da cidade de Ankhiluun que não abaixava a cabeça para ninguém, fiel apenas a si mesma e ao seu código de leis.

Ching Shih, por sua vez, é uma figura histórica controversa que há pouco tempo começou a ganhar maior atenção de historiadores ocidentais. Ela foi uma importante pirata que atuou no início do século XIX na China e que comandava, pessoalmente e com base em um código de leis próprio, cerca de trezentas embarcações e trinta mil piratas. Na época, agiu contra o Império Britânico, mas também contra o Império Chinês da dinastia Qin. Ching Shih não foi morta em combate. Pelo contrário, a pirata se aposentou, um dos motivos que a tornaram tão famosa.

Su Daji e Cixi

Su Daji é a Imperatriz de Nikan, uma mulher poderosa, inteligente, dominadora, apresentada como uma líder implacável e sedenta por poder. Já Cixi foi uma importante figura na burocracia imperial da China entre o final do século XIX e o início do século XX, tendo atuado como imperatriz de fato do país, embora não tenha ocupado a posição oficialmente.

Cixi  foi concubina de um dos imperadores chineses e deu à luz um filho homem, que continuaria a linhagem do imperador. Com a morte do governante e com o filho ainda criança, Cixi deu um golpe de Estado, matando integrantes da junta que conduziria o país, assumindo ela própria o papel de uma poderosa e carismática regente, estando à frente das decisões do país por 47 anos, até sua morte, em 1908. Apesar de no livro Su Daji ter uma postura mais teatral, sedutora e mística que Cixi, o poder das duas imperatrizes, seus métodos para mantê-lo e suas movimentações políticas são muito semelhantes.

Imperador Vermelho e Shennong/Cao Cao

No livro de Kuang, o Imperador Vermelho remete a dois personagens históricos, Shennong e Cao Cao. Se por um lado temos a questão da semântica, pois “Shennong” significa literalmente “Imperador Vermelho”, por outro temos a questão da atitude, e nesse ponto o Imperador Vermelho nos remete mais à figura histórica de Cao Cao, líder do clã de Cao Wei e uma das figuras icônicas do período dos Três Reinos. Visto como um tirano, Cao Cao também foi considerado um governante brilhante e gênio militar, tal como o Imperador Vermelho de Kuang.

Companhia Cinzenta e Companhia de Jesus

Em A República do Dragão, a Companhia Cinzenta, que chega a Nikan junto com os hesperianos, pode ser uma alusão à Companhia de Jesus, com membros especializados em ciências, como a Irmã Petra, e que visam evangelizar os “povos bárbaros” tomados pelo “Caos”, além de fazerem experimentos científicos desumanos com Rin.

A Companhia de Jesus é uma ordem religiosa criada no século XVI com o objetivo de expandir a doutrina cristã no mundo e conter o avanço do protestantismo. Intimamente ligada à educação e ao desenvolvimento da ciência, foi responsável pela criação de diversas escolas e universidades em muitos países. A instituição  também se dedicou, por meio de missionários, à catequese, principalmente em sua missão de evangelização do continente asiático no século XVI.

Consórcio e Aliados

O Consórcio dos países ocidentais, mencionado no segundo livro da série, retrata um grupo de países do Ocidente que está se recuperando de guerras, mas que detém poderio militar e decide a que nações ou grupos fornecê-lo.

Os Aliados, por outro lado, foi um grupo formado por Estados Unidos,  França, Reino Unido e União Soviética, que se reuniu durante a Segunda Guerra Mundial, (1939-1945) com o intuito de lutar contra os países do Eixo: Alemanha, Itália e Japão.

Muito se fala da participação dos aliados no front europeu e no norte da África, porém quase não se menciona a participação dos mesmos no front asiático da guerra, atuando mais como espectadores e posteriormente como potências que desestabilizaram a dinâmica de poder na região e impuseram à força sua visão política. Esse comportamento isolacionista é muito similar à ação do Consórcio, que promete ajuda à Província do Dragão com armas mais potentes e modernas, mas que, quando o conflito se intensifica, inverte o jogo e transforma Nikan em um “protetorado”, estratégia muito parecida com o que os Estados Unidos fizeram com o Japão no pós-Segunda Guerra.

Terra-remotenses e mongóis

É possível fazer uma clara relação entre os terra-remotenses e o povo mongol. Kuang retrata os terra-remotenses de uma forma muito particular em sua obra. Desde a forma de se referir a eles (que indica uma distinção do povo nikara e também a distância geográfica entre as duas regiões) até suas descrições em A Guerra da Papoula: “Jiang parou outra vez diante de uma pintura que mostrava uma horda de terra-remotenses montando corcéis gigantes. Seus rostos eram carrancas selvagens,  bárbaras. Seguravam arcos maiores que os torsos.”  

O Império Mongol, inspiração para as Terras Remotas, surgiu da unificação dos diversos povos nômades que habitavam a Ásia Central e foi o maior império de terras contíguas da história. Os mongóis sempre foram representados, de forma romantizada, como um povo nômade e cavaleiro, que buscava ressaltar suas proezas em combate. Uma de suas grandes habilidades era sua capacidade de atirar com arcos, em especial em combate montado, algo que também faz parte da representação que Kuang faz dos terra-remotenses.

Hesperia e nações do Ocidente

Esse talvez seja um dos pontos mais curiosos para nós, não asiáticos, na trilogia de Kuang. Ao ler o livro, existe uma confusão ao tentar entender quem seriam os hesperianos. Em certos momentos, eles parecem os navegadores portugueses, com as suas viagens para as Índias; em outros, os britânicos na expansão do império ao longo do século XIX. Às vezes ainda há semelhanças com os alemães e suas frotas de zepelins. Por fim, a grafia Hesperia nos remete a algo como Ibérica, nos lembrando os espanhóis, sem deixar de suscitar a imagem dos estadunidenses e seu histórico nas guerras mundiais do século XX.

Em sua primeira descrição dos hesperianos, Kuang escolhe dizer que Rin não conseguia diferenciar um do outro, todos tendo os mesmos olhos, os mesmos cabelos, narizes largos e mandíbulas quadradas. Se para nós isso pode parecer absurdo, é bem próxima à visão ocidental de que os asiáticos são todos iguais, sejam eles chineses, japoneses, coreanos ou vietnamitas. Vale pensar sobre isso.

Debates contemporâneos

Muitos são os eventos e relatos históricos que inspiraram a série A Guerra da Papoula, assim como há paralelos importantes na obra com personagens da literatura, dos contos e da vida real. A fantasia de Kuang, além de eletrizante e bem construída, também carrega uma carga importante de temas que são contemporâneos e pauta de debates filosóficos, políticos, jurídicos e sociais.

Embora os livros levantem variadas discussões, procuramos aqui destacar alguns debates que, para além da narrativa, das relações históricas e das reviravoltas da trama, chamaram a nossa atenção. Duas temáticas que fazem parte do repertório de temas associados ao direito interno e internacional e caros à sociedade civil global têm lugar de destaque na série, sendo eles os crimes de guerra, apresentados em vários momentos da obra, como o Massacre de Golyn Niis, e o tráfico de drogas, sendo o ópio a mais clara representação desse tema.

Ao estudarmos  guerras e os crimes a elas associados, outras temáticas amplamente trabalhadas por Kuang também vêm à mente, principalmente em A República do Dragão, como a questão dos refugiados (ou deslocados internos), sempre à margem, famintos, vistos como indesejados, desamparados e como classe inferior, e da corrida armamentista, tema de grande importância na busca por tecnologia militar, armas de fogo, navios de guerra, zepelins e soldados da Província do Dragão.

Outros temas pertinentes na contemporaneidade que também emergem com muita força no segundo livro da série são os debates que envolvem as diferentes formas de Governo, opondo império e república, as lutas de classe, algo que ganha grande relevância na obra, além da construção do outro, assunto especialmente interessante a partir da chegada dos hesperianos a Nikan.

A obra de Kuang é uma aula em diversos sentidos e nos deixa com a sensação de que lemos, aprendemos e experimentamos algo que ultrapassa os limites da fantasia.

*Leticia Simões é Doutora e Mestre em Relações Internacionais (UERJ). Professora Universitária do Unilasalle-RJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Centro de Estudos sobre China Contemporânea e Ásia (CEA-UFF).Diretora de Treinamentos da Go Global – Consultoria e Treinamentos.

*Mário Lima é Doutorando em Economia Política Internacional (UFRJ) e Mestre em Relações Internacionais (UERJ).


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