Uma vistoria

Por Leticia Wierzchowski

5 / dezembro / 2013

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Faz muitos anos, li um romance de um autor francês cujo nome nunca mais consegui lembrar. Esse livro, indicação da Martha Medeiros, conta a história de uma paixão extraconjugal. O casal em questão, em um certo momento da história, escapa para o exterior até o dia fatídico em que a mulher decide voltar para o ex-marido. Cabe ao homem, que é também o narrador do livro, fazer a vistoria da casa que alugara para viver esse amor. Assim, enquanto o funcionário da imobiliária apontava riscos nas paredes e lascas nos móveis, o narrador evocava, através da topografia da casa adorada, os momentos vividos ali com a sua amante: o que para o corretor era uma marca na parede ou um arranhão na laca de uma mesa, para o narrador, era a evocação de uma noite especial, de uma briga terrível na qual copos foram quebrados e palavras duras foram ditas, de um passado vivido com amor em todos os seus altos e baixos.

Nunca esqueci aquela cena… Recentemente, por conta de um evento pessoal, acabei me colocando na pele daquele personagem no dia da vistoria do seu imóvel alugado. Porque recebi aqui na minha casa uma corretora, posto que estamos de mudança e decidimos alugar o nosso apartamento. E então, um pouco porque sou romancista e a narrativa não se descola de mim (nem para o meu próprio bem), alternei-me entre o papel de dona da casa e o de corretora de imóveis: numa hora, eu olhava cada coisa com os meus olhos amorosos e cheios de memórias, e depois eu já era a moça ao meu lado, enxergando cada pequeno risco, cada falha no tabuão, cada porta que não encaixava perfeitamente. Eu via a janela cuja veneziana emperra um pouquinho ao descer pelo seu velho trilho, e via também uma tarde quando a veneziana emperrou em pleno temporal, e me lembrei de como rimos e ficamos furiosos ao mesmo tempo, tentando fechar a teimosa veneziana num dezembro anos atrás. E vi, nos riscos do tabuão, os primeiros passos do meu filho que já se vai para os treze anos, e em cada canto, armário e gaveta, as recordações pulavam por sobre mim, lindas, doloridas e alegres; e eu já não estava mais mostrando o meu apartamento para outrem, estava revendo a minha própria vida, a vida feliz que vivi entre estas paredes nos últimos doze anos. Natais, aniversários, as marcas dos carrinhos do meu filho caçula, os risos e as manhãs, as noites românticas, sob o tapete a cicatriz de um antigo pipi da nossa cachorrinha que fugiu há dois verões, tudo, tudo pulou em cima de mim naquela tarde. Não sei exatamente o que a corretora achou do nosso apartamento. Ele tem um estado de espírito, e tem também os seus defeitos, os seus vincos, riscos e janelas teimosas. E eu tive orgulho de tudo isso naquele dia, como teve o personagem do romance que não consigo esquecer. O fato, meus amigos, é que a felicidade deixa marcas.

Leticia Wierzchowski é autora de Sal, primeiro romance nacional publicado pela Intrínseca, e assina uma coluna quinzenal aqui no Blog.

Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Um de seus romances mais conhecidos é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

Este texto foi publicado originalmente no jornal Zero Hora, no dia 11/11/2013.

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Leticia escreve às sextas.

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Comentários

5 Respostas para “Uma vistoria

  1. É verdade. Hoje, arrumando armários, encontrei notas de compra de televisão, colchão, sofá, livros, discos, acumuladas no decorrer de muitos anos. E hesitei em me desfazer de papéis que me despertaram lembranças boas de tantas fases e conquistas. Pensei até em relacionar tudo em um diário, mas desisti.

  2. Oi Marco, tudo bem?
    Na verdade, não se trata de livro, é apenas uma crônica. Leticia está de mudança marcada e, como é uma escritora sensível e magnífica (desculpe, nós somos fãs!), a experiência com a corretora de imóveis a inspirou a escrever.
    Ficamos felizes que tenha gostado do texto. 🙂
    Um abraço,
    Editora Intrínseca

  3. Oi, pessoal da Intrínseca. Na verdade, eu queria saber o romance que a Martha Medeiros sugeriu a ela, que meio que inspirou a crônica. Ela diz que não lembra o nome do autor, mas se lembrar o nome do livro… adoraria saber.

    Outra coisa: vocês deviam aproveitar a deixa e pensar em reunir as crônicas da Leticia num volume só… uma seleção da autora, que tal? Seria formidável. Ela escreve crônicas maravilhosas, e o gênero está ressurgindo no Brasil…. Por favor, pensem a respeito.

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