Nabokov, meus amigos e eu

Por Leticia Wierzchowski

11 / setembro / 2014

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Eu me gabo de ter amigos. Tem muitas coisas que não tenho – uma casa na Riviera Francesa, um Manolo Blahnik, um cachorro, um plano de saúde que cubra as minhas consultas dentárias, um e-reader, mas amigos tenho vários. E dos bons. Amigos que me acompanham há muito anos e amigos recentes (alguns). Alguém disse que a gente não faz um amigo, reconhece-o. Acho pura verdade. Teve gente que tentei incluir nas minhas amizades, mas não deu. Havia gentileza, educação, até mesmo refinamento, bom humor e inteligência, mas a coisa não fluía. Era igual a carro engasgado – melhor andar a pé do que encrencar no alto de uma ladeira.

Não concordo com muitas das coisas que meus amigos fazem ou dizem − o que comem, o que vestem, como educam os seus filhos, como amam ou desamam.  Amigo não é o reflexo da gente, é mais encaixe, compreensão, afinidade e carinho. Amigo é ponte, é paciência, é perseverança. Amigo é honestidade. Confio nos meus amigos assim como confio que sairei de um poema da Sophia de Mello Breyner Andresen melhor do que quando pus meus olhos nele. Confio nos meus amigos assim como confio em Nabokov.

Dias desses, queria esquecer da vida por algumas horas. Saí por aí andando a esmo, listando as possibilidades. Beber até cair na sarjeta não é muito a minha praia, e eram onze horas da manhã. Corri pra livraria e comprei um Nabokov. Tipo assim: Nabokov cura o enjoo da vida. Me aboletei num canto e mergulhei no universo fantástico, lírico e vigoroso de Nabokov. Foi um remédio e tanto. Por algumas horas, meus desgostos cederam espaço para antigas tardes em Vyra, temporais de verão e jogos de tênis e risos e passeios por florestas russas cheias de musgo e de sombras. Quando fechei o livro (com muitas páginas pela frente, graças a Deus), eu estava muito melhor – e sem nenhuma perspectiva de ressaca. É claro que a companhia de um bom amigo provavelmente teria tido efeito semelhante – amigo é aquele que nos ajuda a rir dos nossos próprios problemas. Mas eu estava sem amigos por perto – aliás, meu sofrimento vinha mesmo de um amigo. Assim como existem livros ruins, também existem maus amigos. A vantagem do livro é que, lá pela página dez, ele não nos enrola mais; já as criaturas humanas são um pouco mais melífluas. Foi o senhor Nabokov quem escreveu em seu Fala, Memória que “as primeiras e as últimas coisas tendem a ter um tom adolescente”. Foi isso que senti naquele dia, carregando o meu engano e a minha mágoa pela rua – tudo às vezes parece “tão adolescente”. Até eu estava adolescente naquele dia, pensando em encher a cara num boteco às onze e meia da matina.

De qualquer modo, o dia passou, levando embora as suas angústias. E depois a semana passou também, e eu ainda estou aqui. Quanto ao Nabokov, economizei as páginas o máximo que pude, mas acho que ele não dura até amanhã.

 “O uísque é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado.”

Vinicius de Moraes

LETICIA WIERZCHOWSKI é autora de Sal, primeiro romance nacional publicado pela Intrínseca, e assina uma coluna aqui no Blog.

Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Um de seus romances mais conhecidos é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
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Comentários

3 Respostas para “Nabokov, meus amigos e eu

  1. Texto magnífico! Sem palavras. Tb tenhos amigos que são verdadeiras raridades. Obrigado Letícia pelas belissimas palavras.

  2. Muito bom o texto,uma verdadeira injeção de animo,parabens Leticia.

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