Tenho uma amiga querida com um estranho dom para cheiros peculiares. Nunca soube de fato distinguir se isso era fruto de um olfato aguçado, de uma imaginação fértil ou das duas coisas. Por exemplo: “cheiro de retiro”, “cheiro de cavalo de Glória” — o que dizia respeito aos cavalos que ela cavalgava em Glória do Goitá, um município de Pernambuco —, “cheiro de frio” ou até “cheiro de gato depois de tomar banho”. Sempre me diverti muito com essas associações que ela faz, de repente, do nada, em contextos inusitados.
Não vou negar, contudo, que guardo em segredo alguns cheiros de coisas específicas também. Ontem consegui um tempo para caminhar no parque umas três e meia da tarde. Durante a caminhada, passei por uma mangueira aberta aguando a grama seca pelo verão intenso. O cheiro era de bolo de terra. Automaticamente, fui transportada para minha infância no interior, na casa de minha avó, quando fazia uma verdadeira papa de terra que me lembrava brigadeiro de colher. O cheiro da terra quente do sol molhada por mim era exatamente aquele: cheiro de bolo de terra. Começo a rir sozinha, lembrando minha amiga a quem amo tanto e que alarga meu sorriso. Continuo a caminhada, agora invadida por diversas pequenas lembranças esquecidas.
Termino a caminhada e saio do parque para o meio da rua. Nesse instante o cheiro é de fim de ano, composto por uma mistura de tinta fresca, pano molhado — provavelmente tapetes lavados estirados na janela —, gás carbônico — porque o trânsito enlouquece a partir de dezembro, e cada carro deve criar mais dois na garagem durante a calada noite, só pode ser — e doces. Sinto um cheiro atípico de doces no ar. A essa altura, já estava divagando sobre o poder de teletransporte que têm os cheiros.
Minha tia Lourdes tinha cheiro de pano guardado, mas gostoso. Às vezes, cheirava a mingau. Tia Nevinha tinha cheiro de perfume forte com adição de livros e rua. Meu avô tem cheiro de dinheiro e graxa, normalmente. Ele tem uma vendinha de autopeças. Minha mãe tem cheiro de madeira e banho. Às vezes, flores e banho — depende do produto que está usando nos cabelos. O interior tem cheiro de terra seca com folhas se acabando. Domingo tem cheiro de missa, e missa tem cheiro de incenso com famílias e seus diversos odores. Algumas vezes, na rua, quando sinto cheiro de chocolate quente ou bolo saindo do forno, sinto cheiro de Espanha.
O cheiro vem de fora e entra completamente em nós, ativa todos os sentidos. Penso que ele nos teletransporta tão rapidamente porque é uma das conexões mais intrínsecas, mais íntimas, que temos com as coisas e as pessoas ao redor. Essa conexão crava na memória porque entra, toca dentro de nós, organicamente. O cheiro de alguém ou de algum lugar nos faz sentir que estamos perto dele de novo, ou naquele lugar outra vez, se fecharmos os olhos.
O cheiro do cheiro, portanto, é de saudade.
Ela também vem de fora e entra completamente em nós, só porque estamos passando desprevenidos.
A saudade boa, a que dói, a que se quer esquecer, volta com o olfato. Ela reescreve páginas apagadas, dias deixados no passado, pessoas deixadas de lado e aquelas que permaneceram.
Só sente cheiro de saudade quem degusta o tempo com todos os sentidos que ele traz.
E deixa que ela entre
com toda a baderna que faz,
com todo os gostos que tem.
E permite sentir como aquele cheiro
faz bem
e tantas vezes faz mal
também.
Amo sua coluna, seus poemas! Eles preenchem o meu coração, o meu dia, a minha alma! Você traduz em suas palavras sentimentos que são meus e que achava não ter sentido, ou ser só sentido por mim! Obrigada Clarice por não deixar a poesia ir embora!
olá ,amei ,seus poemas….cada ummais verdadeiros que os outros…parabéns