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O Labirinto do Fauno reforça o poder da imaginação em tempos sombrios

16 / agosto / 2019

por André de Leones*

Longe de funcionar como uma fuga efetiva ou um refúgio acolhedor, os contos de fadas são, dentre várias outras coisas, um reflexo do nosso mundo e de todas as suas monstruosidades e atrocidades. Sim, eles muitas vezes são elusivos, mesmo tortuosos, mas a forma como recriam aquela turbulência essencial, intrínseca à existência humana, é o que os torna reveladores e verdadeiros, e é a razão pela qual, independentemente da idade, qualquer pessoa com um pouco de imaginação se sente tão inspirada por eles. No fim das contas, todo e qualquer universo fantástico que se preze aponta direta e perturbadoramente para o nosso universo ordinário, mas o faz de forma instigante, desenrolando um diálogo que é sempre iluminador e libertador.

Tendo isso em mente, a viagem que empreendemos em O Labirinto do Fauno adquire um teor ainda mais desnorteante, pois a mecânica daquele reflexo está, desde o princípio, exposta, visível. Mais do que uma mera “novelização” do grande filme de Guillermo del Toro lançado em 2006, o livro da renomada Cornelia Funke propõe uma verdadeira abertura para o mundo imaginado pelo cineasta. É como se a autora tivesse em seu poder um pedaço de giz como aquele usado pela protagonista da história, a menina Ofélia, para entrar e sair do universo mágico povoado por faunos, fadas e monstros. Assim, pelo cuidado com que são preparadas e executadas, as passagens do mundo real para o fantástico servem para expor aquela mecânica de que falei no começo deste parágrafo e adensar ainda mais a dramaticidade – ou tragicidade – do enredo. Como é dito a certa altura, os contos de fadas “dão uma forma adequada ao mal”, e o mal real, humano, está sempre ao alcance dos olhos e das mãos.

Órfã de pai, ameaçada pelo padrasto grotesco e correndo o risco de também perder a mãe, Ofélia não tem “apenas” o mundo dos livros e da imaginação – sua amizade com Mercedes, por exemplo, empregada do padrasto, é extremamente importante. No entanto, é na narrativa fantástica que se desvela diante de seus olhos que talvez, paradoxalmente, esteja a sua maior fonte de força. É difícil imaginar que, dadas as circunstâncias brutalíssimas do mundo real, Ofélia mantivesse a sanidade sem a ajuda desse outro mundo, cujos horrores não são menores, mas cujo desenrolar nos parece mais lógico – executadas as tarefas que lhe são passadas pelo Fauno, a recompensa estará ao seu alcance, e ela, então, terá se salvado.

Levando-se em conta que a história se passa na Espanha de meados da década de 1940, quando o país era corroído por uma ditadura fascista violentíssima, e isso após anos de Guerra Civil, a salvação para qualquer pessoa com um mínimo de dignidade e consciência era algo talvez inalcançável. Além disso, o padrasto de Ofélia é um capitão do exército fascista, responsável por caçar e abater os poucos rebeldes remanescentes, “trabalho” no qual ele e seus comandados se esmeram com uma crueldade chocante; são “lobos que comem homens”.

Como dar conta de uma realidade tão devastadora? Como suportá-la? Como não se perder nas sombras que nos acossam? Como não se desesperar, como não se entregar? Ora, se o mal está sempre à espreita, devemos seguir o exemplo de Ofélia e dar uma forma adequada a ele. Não se trata de buscar refúgio em alguma outra realidade, mas, sim, de usar aquilo que a imaginação nos dá, esses mundos outros que, no entanto, não são tão “outros”, para lançar alguma luz sobre a desolação presente, circundante. Nesse sentido, as “tarefas” de Ofélia são as formas que ela encontra para se equilibrar aqui e alhures, para, até onde for possível, sobreviver às agruras daqui e de lá, para não se perder de si e dos outros enquanto enfrenta esse enorme labirinto que é a própria vida.

Em tempos sombrios, os contos de fadas ensejam um diálogo não só com o mundo, mas também com a nossa própria alma, com os olhos que, lançando-se ao redor, ainda são capazes de enxergar beleza e mistério em quase tudo. Longe de denegar a realidade, os contos tratam de realçá-la com uma luz toda própria, abraçando-a ao mesmo tempo que a transcendem. E é por transcendê-la, por vê-la de outras formas e por perceber em si a força para mudar interna e externamente o que há, que a imaginação carrega em si a desobediência essencial que tanto ameaça quaisquer formas de repressão, quaisquer fascismos.

Ao investir em sua imaginação, Ofélia investe na liberdade e se lança no mundo, desbravando-o ao mesmo tempo que o recria. Por mais difíceis que as coisas sejam ou se tornem, pessoas como ela jamais estão sozinhas, pois a magia do mundo está nessa força imaginativa, nessa eterna abertura para o que há ao redor, nessa disposição para o diálogo, nessa aceitação da vida e, por fim, nessa adequação do bem. O Labirinto do Fauno é, portanto, similar ao Livro das encruzilhadas que Ofélia recebe do Fauno no começo de sua jornada: entre o esquecimento e a luz, entre a opressão e a liberdade, entre a morte e a vida, é muito fácil perceber para qual dessas vias aponta a imaginação.

*André de Leones é autor dos romances Eufrates e Abaixo do paraíso, entre outros. Visite seu site: andredeleones.com.br


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Comentários

2 Respostas para “O Labirinto do Fauno reforça o poder da imaginação em tempos sombrios

  1. Aprender a imaginar é uma excelente forma de exercitar expor o que gostaríamos de dizer ou criar. É a partir dela que expressamos quem realmente somos e qual o nosso verdadeiro papel na sociedade. Infelizmente, a capacidade de imaginar tem sido suprimida em nome de uma sociedade robotizada e voltada para o pensamento excessivamente racional.

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