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A importância de nunca esquecer a Ditadura

27 / março / 2024

Por Vinicius Barbosa*

Eu cresci numa rua de terra chamada 31 de março, no interior de São Paulo. Corri nessa rua, caí nessa rua, e nunca me perguntei por que tinha esse nome. A gente não costuma se perguntar daquilo que parece sempre ter existido. A rua de terra virou de concreto, mas o nome se manteve. Menos criança, parei de correr e de cair, mas continuei diariamente pisando sobre aquele caminho. O concreto virou asfalto, e o nome mudou para homenagear uma antiga moradora, avó de alguns meninos que cresceram comigo. Só aí eu percebi, já um adolescente, que as ruas não têm nomes. Elas recebem nomes. As coisas têm um começo, mesmo que a nossa memória não alcance, e se agora a minha rua homenageia alguém, antes ela comemorava alguma coisa. O asfalto sobre o concreto soterrou a memória. As crianças que hoje correm e caem naquela rua não se perguntam se ela tinha outro nome antes. Mas eu nunca mais esqueci que aquela rua, durante décadas, festejou o Golpe Militar de 1964.

            Na noite de 31 de março, 60 anos atrás, um subcomandante tomou a frente da insatisfação dos militares e iniciou o golpe. Esse mesmo homem, em 1937, havia escrito um plano fictício de tomada do poder pelos comunistas. Algo que nunca existiu, mas que serviu de desculpa para Getúlio Vargas suspender a Constituição e se manter no poder, dando o Golpe do Estado Novo. A primeira vez que li sobre essa relação pensei em como era possível uma mesma pessoa participar diretamente de dois golpes contra nossa democracia. Hoje, consigo perceber claramente que, para algumas pessoas, lidar com o diferente é tarefa insuportável.

            Os autoritários são assim: desejam o controle e a ordem sem contradições. Entre 1964 e 1985, vivemos um dos períodos mais dramáticos da nossa história, onde as perseguições, prisões, sequestros e torturas aconteciam a todo tempo, bastava uma mínima suspeita na imaginação dos militares. Para as pessoas comuns, restavam poucas opções: o silêncio, o exílio ou a brecha. Já viu uma rachadura na parede? Ela não devia estar ali. A rachadura é a quebra do esperado, a contradição do uniforme. No cotidiano da ditadura, existiam rachaduras, e era aí que as pessoas podiam agir. Algumas devolveram a violência física com violência física. Outras revidaram a violência simbólica com arte. Era uma luz pela rachadura.

Apreensão de livros realizada pelo governo militar na Universidade de Brasília. Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Durante a ditadura, diversos livros foram censurados, mas alguns outros que continham críticas ao regime, mesmo que indiretas, não foram proibidos. Como isso é possível? Bom, a arte, a literatura, depende da imaginação. As personagens das páginas pedem empatia. A gente precisa se colocar no lugar delas para a história fazer sentido. Os autoritários, por sua vez, são incapazes de entender ambiguidades. Não existem tons de cinza no seu mundo preto-e-branco. Muitas produções artísticas, que criticavam os militares que tomaram o poder no Brasil, sobreviveram ao controle da ditadura por se aproveitarem das ambiguidades.

“Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão, não”, começa a letra de Apesar de você, de Chico Buarque, que mais pra frente chega no refrão: “Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia”.

O “você” dessa música foi entendido pela cabeça dos militares como sendo uma mulher mandona, quando na verdade era a própria ditadura. Outro caso, que brinca com a ambiguidade dos sons, foi em Cálice, também de Chico com Gilberto Gil. Na parte principal, eles cantam:

“Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue”.

O que foi visto como uma referência bíblica, era de novo uma crítica à ditadura. “Cálice” era, na verdade, um “cale-se”, fazendo alusão à censura. Apesar desses casos, centenas de outros foram censurados, de músicas a livros. Elio Gaspari, que escreveu cinco volumes sobre o período na Coleção Ditadura, comenta que em 1968 os militares realizaram 17 atentados e 14 explosões, onde editoras e livrarias estavam entre os alvos.

Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

A Ditadura Civil-Militar no Brasil parece coisa do passado, mas é uma ferida aberta que ainda não cicatrizou. Este 31 de março não é uma data a se comemorar, mas um momento para se lembrar. Em 2014, a jornalista Míriam Leitão escreveu um romance exemplar. Tempos Extremos narra relações conflituosas entre pais e filhos e irmãos revisitando passados que o Brasil busca acobertar pelo silêncio, como as violências da escravidão no século XIX e os subterrâneos da ditadura no século XX. As linhas temporais são suspensas nesse romance, como muitas vezes são na realidade. Estou aqui hoje falando de algo que aconteceu há 60 anos porque esse passado é nosso presente. Sob a camada de asfalto da minha antiga rua, tem uma homenagem à ditadura. Não posso nunca esquecer disso. No dia que eu esquecer, a comemoração vence. No dia em que a gente deixar de lembrar, a ditadura se torna passado e a gente perde. Lembrar é um ato de resistência. O esquecimento é a vitória dos golpistas.

*Vinicius Barbosa é idealizador do @latinaleitura, um espaço de divulgação e reflexão sobre América Latina pelas perspectivas histórica e literária. É formado em História, com bacharelado, licenciatura e mestrado, pela Universidade Federal de São Paulo, onde desenvolveu pesquisas relacionadas à Arte e Política, redes de sociabilidade e fotografia. Trabalha atualmente no mercado editorial nas áreas de comunicação e produção editorial.

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