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A Guerra da Papoula e A República do Dragão: a História por trás da Fantasia

8 / agosto / 2023

Os eventos reais que inspiraram a aclamada série de R.F Kuang

Por Leticia Simões* e Mário Lima**

Composta pelas obras A Guerra da Papoula, A República do Dragão e The Burning God (ainda sem título em português), a série A Guerra da Papoula, de R.F. Kuang, foi considerada uma das 100 melhores fantasias de todos os tempos pela revista Time e uma experiência única pelo Washington Post. Um olhar mais atento sobre as obras é capaz de identificar diversas referências a importantes eventos históricos dos séculos XIX e XX na Ásia e em sua interação com o Ocidente, além de debater aspectos da política internacional contemporânea.

Muitas fantasias têm a história e suas figuras marcantes como inspiração, em alguns casos se colocando na vanguarda de temas que só depois serão tratados com naturalidade pelas pessoas. A diferença da série de Kuang, para nós aqui do Brasil, é que ela faz uma abordagem única do “Oriente”.

Quantos de nós já nos envolvemos em narrativas de autores como Tolkien, de O Senhor dos Anéis, Lewis, de As Crônicas de Nárnia, Cline, de Jogador Número Um, Herbert, de Duna, entre tantos outros, e nos deparamos com acontecimentos fantásticos que nos lembravam algumas aulas de história? A série A Guerra da Papoula conta a saga da jovem Rin, órfã de uma família pobre, que vê sua vida mudar depois de entrar para a mais prestigiada academia militar de um Império que está próximo de ruir e à beira de uma nova guerra. Os livros também entrelaçam história e fantasia, mas como não estamos sempre familiarizados com a história da China, do Japão e de outras nações asiáticas, podemos deixar passar despercebidos alguns detalhes.

Para Kuang, claramente a China é Nikan, o Japão é a Federação de Mugen e Hesperia é o Ocidente, apresentado como uma amálgama de pessoas de aparência exótica, todos iguais, de índole violenta e com uma religião mitológica. Já viu esse discurso por aí?

Nos tópicos a seguir, apresentamos alguns desses eventos históricos marcantes e reais que serviram de pano de fundo para o universo complexo e rico em detalhes elaborado por Kuang. Como brasileiros, pedimos licença para emprestarmos um olhar próprio, embora ocidentalizado, à obra, fazendo pontes entre o mundo criado pela autora e fatos que marcaram o século passado. Mas, antes, um alerta importante! A lista apresenta spoilers sobre a história, então CUIDADO!

Eventos históricos

Keju e Exames Imperiais (605-1905)

No primeiro livro da série, Rin passa noites estudando para o exame mais difícil do Império. Esta prova é inspirada em exames imperiais reais. Os exames imperiais chineses eram uma série de provas aplicadas durante boa parte do período imperial da China para a escolha de “funcionários públicos” (a burocracia estatal).

Assim como o Keju, que levou Rin à Sinegard, os exames imperiais, que em pinyin (romanização do mandarim) também se chamavam Keju, eram a forma mais rápida de ascensão na escala social, embora na grande maioria das vezes esses exames selecionassem membros da elite, população mais culta e com recursos. Muitas das descrições de Kuang do exame feito por Rin se assemelham às dos Exames Imperiais da realidade, como a memorização de livros, a interpretação de clássicos e as rigorosas medidas de segurança que puniam aqueles que tentassem burlar o Keju.

As províncias do Império Nikara e os Senhores da Guerra na China (1916-1928)

O Império Nikara é dividido em doze províncias nomeadas a partir do horóscopo chinês. Os governantes de cada província possuem laços frouxos entre si e com o governo central, criando relações de desconfiança no Império.

Em muitos momentos, a China, tal qual Nikan, esteve fragmentada em termos de governo. O fenômeno dos Senhores da Guerra que destacamos aqui é o mais recente, quando o último imperador Qin foi destituído, em 1912, e a República nascia, mas com uma série de chefes militares, com influências regionais dividindo o país, apesar da existência de um governo central. Havia coalizões que formavam, por volta de 1925, cerca de dez grandes áreas de influência militar, que envolviam tanto Senhores da Guerra independentes e contrários à nova república, quanto líderes aliados ao governo do Partido Nacionalista Chinês. A existência desses líderes militares das províncias se estendeu até o estabelecimento da República Popular da China, em 1949.

Na obra de Kuang, muitas províncias não respeitam o poder da Imperatriz Su Daji, apesar de algumas serem aliadas ao Império. Da mesma forma, muitos Senhores da Guerra não reconheciam a República da China, embora houvesse facções aliadas à mesma.

Guerras da Papoula e Guerras do Ópio (1839-1942/1856-1860)

A série de livros de Kuang se chama A Guerra da Papoula, e se você já estudou ou leu um pouco sobre a história da China no século XX, não consegue ver esse título sem associá-lo às Guerras do Ópio que a China travou contra o Ocidente.

A Primeira Guerra do Ópio se iniciou em 1839 e estava diretamente ligada ao domínio que a Inglaterra e outras potências ocidentais, além do Japão, desejavam exercer sobre a China. No século XIX, a China tinha um sistema de governo centralizado, uma cultura vasta, riquezas e produtos que eram apreciados no Ocidente, como chá, porcelana e seda. Por outro lado, a China era bastante relutante aos produtos que vinham do Ocidente, a ponto de estar sempre comercialmente em vantagem frente aos britânicos, que se entendiam como civilização superior. O único produto vendido pelos ingleses que tinha boa aceitação na China era o ópio.

Na primeira metade do século XIX, o imperador chinês tentou impedir o comércio de ópio, pois eram evidentes os malefícios da droga à população. No entanto, os ingleses insistiam. Em 1839, carregamentos de ópio ingleses foram incinerados pelo Exército chinês, e a Grã-Bretanha revidou com tecnologia e força militar superiores, garantindo assim a vitória comercial.

Outra Guerra do Ópio irrompeu poucos anos mais tarde, em 1856, também se aproveitando da fragilidade militar chinesa, com o intuito de conseguir mais vantagens comerciais e políticas sobre o Império Chinês. As Guerras do Ópio deram início ao que a China chama de Século das Humilhações e se relacionam diretamente com a Segunda Guerra da Papoula, da qual Nikan é vítima e que envolve os hesperianos, acusados de invadirem o território nikara, trazer missionários e, claro, ópio. 

Invasão da Federação de Mugen e Guerras Sino-Japonesas (1894-1895 / 1937-1945)

O Império Nikara e a Federação de Mugen se enfrentaram ao menos duas vezes durante as Guerras da Papoula, e sua rivalidade nos faz lembrar das disputas sino-japonesas. As relações entre China e Japão são complexas, uma vez que, apesar de muito próximos, os países têm sérias desavenças sobre política regional e mundial, disputas históricas de poder e conflitos bilaterais. Tais relações são apresentadas nos livros da série nas interações entre Nikan e Mugen. A ilha do arco, arquipélago pequeno mas poderoso, é uma clara referência ao Japão, mais ocidentalizado e com maior relação com os hesperianos, algo que Su Daji comenta com Rin no segundo livro, A República do Dragão. O Japão tentou invadir a China mais de uma vez, assim como Mugen fez com Nikan. Duas das três Guerras da Papoula trazidas nos livros estão associadas à Federação de Mugen: a primeira, retratada apenas no passado, e a terceira, vencida por Rin, nos faz lembrar das duas guerras entre China e Japão, a primeira no final do século XIX e a segunda em meados do século XX.

A Primeira Guerra Sino-japonesa se deu em um momento de expansionismo do Império Japonês. Ao vencer a guerra, o Japão impôs um tratado que obrigava a China a ceder alguns de seus territórios, entre eles a ilha de Taiwan. Apesar de os livros de Kuang não apresentarem tantos detalhes sobre Speer, sabemos que a ilha, antes sob o domínio de Nikan, foi tomada por Mugen e posteriormente aniquilada, sendo assim uma alegoria a Taiwan.

Durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, o Exército japonês invade a China e comete alguns dos crimes mais cruéis do século XX, como o Genocídio de Nanquim, sobre o qual falaremos a seguir. Apesar de ter se iniciado antes da Segunda Guerra Mundial, a Segunda Guerra Sino-Japonesa só é encerrada por um evento externo, duas bombas atômicas lançadas no território do Japão pelos Estados Unidos. Nos livros, as ações da Federação de Mugen também são interrompidas por forças externas.

Tratados de Nikan com Hesperia e Tratados de Nanquim e Tianjin (1842 e 1858 )

Em diversas passagens dos livros, alguns tratados são mencionados, alguns deles do Império Nikara com Hesperia, sempre retratados como acordos que beneficiam apenas um dos lados, que definitivamente não era o de Nikan. Dentro do contexto do Século das Humilhações na China, as Guerras do Ópio acabavam sendo encerradas com tratados que traziam vantagens apenas a Grã-Bretanha e outras potências ocidentais, além do Japão. Os Tratados de Nanquim e Tianjing fazem parte dos chamados Tratados Desiguais das Guerras do Ópio, impostos ao Império Chinês devido à superioridade da força militar britânica.

No segundo livro, vemos o estreitamento das relações entre Hesperia e o Império Nikara, com base principalmente no poderio militar e tecnológico dos hesperianos  (zepelins, navios de guerra e arcabuzes). Embora o livro não aborde um tratado específico, fosse de Nikan com a Federação de Mugen ou com Hesperia, ao examinarmos um pouco as concessões que os tratados desiguais deram aos britânicos, podemos ver muito da relação de subserviência de Nikara com Hesperia, profundamente criticada por Su Daji. Enquanto o Tratado de Nanquim (1842), entre outras coisas, protegeu mercados estrangeiros, reduziu a autoridade do governo chinês e cedeu Hong Kong por 155 anos à Grã-Bretanha, o Tratado de Tianjin (1858) garantiu nova indenização aos britânicos e deu imunidade à lei chinesa para mercadores, missionários e políticos estrangeiros.

Destruição de Golyn Niis e Genocídio de Nanquim (1937)

Em nossa interpretação, a destruição de Golyn Niis e a população que lá estava pelo Exército mugenês no primeiro livro da série está diretamente associada ao extermínio ocorrido em Nanquim na Segunda Guerra Sino-Japonesa.

O Massacre ou Genocídio de Nanquim foi um dos acontecimentos mais trágicos e chocantes da Segunda Guerra Sino-Japonesa, no ano de 1937, e se estendeu por cerca de um mês e meio. Centenas de milhares de civis e combatentes chineses, já desarmados, foram mortos por soldados do Exército do Império do Japão. Foram relatados estupros, saques, incêndios e outros crimes brutais. Esse episódio até hoje marca profundamente as relações entre os dois países e está vivo na memória do povo chinês.

Guerra Civil em Nikan e Guerra Civil Chinesa (1927-1937/1945-1949)

No segundo livro da série, boa parte da jornada que envolve Rin e o Cike está associada à uma guerra civil dentro do Império. No século XX, a China não era mais um império, mas também passou por uma guerra civil violenta, caracterizada por uma série de conflitos entre as forças nacionalistas (que governavam a China) e comunistas (de oposição, lideradas por Mao Zedong e outros).

O líder do Partido Nacionalista , novo presidente da China, Chiang Kai-Shek, lidera uma expedição ao norte em 1928 contra os Senhores da Guerra, que não aceitavam seu poder, e os comunistas da oposição. A Guerra Civil é travada entre o governo do Partido Nacionalista, fundador da República da China, e a oposição do Partido Comunista, com nomes fortes como Mao Zedong e Deng Xiaoping.

Quando o Partido Comunista Chinês vence a guerra, os Nacionalistas  fogem para Taiwan, e, em 1949, é proclamada por Mao Zedong a República Popular da China. O governo nacionalista da China perdeu a guerra civil e foi obrigado a fugir por vários motivos: incompetência no campo de batalha, perda de apoio da população dada a insistência em uma luta de chineses contra chineses, inflação disparada, bens de consumo insuficientes, grande índice de desemprego, fome, aumento de tributos e confiscos.

Sabendo um pouco mais sobre a guerra civil chinesa, podemos traçar uma série de paralelos com conflitos descritos em A República do Dragão, mas com algumas diferenças. Na vida real, o Império Chinês não lutou contra a República, mas se enfraqueceu tanto que foi destituído sem pegar em armas. Assim, foi construída uma República, também enfraquecida, uma vez que os Senhores da Guerra dominavam o interior do país e a maioria não respeitava o governo republicano.

Você deve estar se perguntando: onde está a figura do Partido Comunista em tudo isso? Os últimos capítulos de A República do Dragão trazem a pista necessária: Rin passa a entender que sua luta, a luta de uma menina pobre, órfã e camponesa, não era contra a Federação de Mugen, Hesperia ou a Imperatriz, mas contra as elites que oprimem aqueles que não nascem em berços abastados e privilegiados. No terceiro livro da série, que chega ao Brasil ainda em 2023, Rin se prepara para liderar uma revolução. Mas ela será forte o suficiente para resistir aos chamados da Fênix, sedentos por destruição e vingança?

*Leticia Simões é Doutora e Mestre em Relações Internacionais (UERJ). Professora Universitária do Unilasalle-RJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Centro de Estudos sobre China Contemporânea e Ásia (CEA-UFF).Diretora de Treinamentos da Go Global – Consultoria e Treinamentos.

**Mário Lima é Doutorando em Economia Política Internacional (UFRJ) e Mestre em Relações Internacionais (UERJ).


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Comentários

Uma resposta para “A Guerra da Papoula e A República do Dragão: a História por trás da Fantasia

  1. QUANDO Q SAI O TERCEIRO SOCORRO PRECISO AGORA!!!

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