Essa história aconteceu mesmo, algumas décadas atrás, e ficou famosa na nossa família. Como contadora de história que sou, fui lá atrás na memória para contar esse pequeno causo polonês, que é mais um menos assim:
Era uma vez um avô polonês que emigrou para o Brasil e aqui constituiu família, sonhou um futuro e prosperou. Esse avô, Jan, personagem de alguns livros meus, amava a Polônia de longe, e sempre que falava na sua terra natal, seus olhos se enchiam de lágrimas. E tanto ele amava a Polônia, que amava também os poloneses − todos eles. Se algum imigrante vinha lá das frias terras polacas para o sul do Brasil, podia contar com a franca hospitalidade do meu avô patriótico, com a sua mesa farta e a sua vodka.
Calhou que, certa vez, uma família de conhecidos do avô emigrou para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Meu avô, que tinha uma firma de engenharia, recebia todo e qualquer conterrâneo disposto a trabalhar, e o dito amigo foi incluído na folha de serviço. Meu avô também tinha uma casa modesta, onde outrora começara a vida com minha avó, e essa casinha, com o passar dos anos, virou entreposto de poloneses imigrantes. Assim, quando o amigo aportou aqui, lá estavam meus avós prontos para recebê-los: a família vinha cansada, assustada − não falavam uma única palavra de português. O velho Jan colocou todo mundo no carro e rumou para a casinha, que tinha sido preparada de antemão por minha zelosa avó, e onde um jantar quentinho e camas arrumadas esperavam pelos recém-chegados. Meus avós ajeitaram os conterrâneos como puderam − o casal de esposos e seu filho foram alimentados, tomaram banho e, antes de irem dormir, meu avô lhes disse:
− Descansem bem. Amanhã cedo, eu volto com o café da manhã. Não se preocupem com nada.
O avó sabia, por experiência própria, que o medo nos olhos dos recém-chegados seria atenuado por uma boa noite de sono e, com essa certeza, voltou para a sua própria casa. No dia seguinte, conforme o prometido, meu avô estava lá com um cesto de café da manhã, exalando o perfume do pão quentinho que a avó sovara pouco antes. Qual não foi o espanto dele ao encontrar a família polonesa resfestelada e muito feliz, tomando sol na varanda.
− Cheguei com o café − disse meu avô, contente.
Ao que o amigo respondeu:
− Obrigada, Jan. Mas, realmente, o povo brasileiro é muito gentil, muito acolhedor. Hoje cedo, algum bom vizinho nos deixou uma bandeja toda enfeitada com um delicioso café da manhã.
O avô achou aquilo um pouco estranho e pediu para ver a bandeja. Assim, entraram todos na cozinha e, sobre a mesa, já bastante desfalcada dos seus quitutes, estava uma bela oferenda para algum orixá. A casa ficava numa esquina bem em frente a uma encruzilhada, e o tanto de cachaça que o polonês encontrara na bandeja logo ao acordar lhe deixou com um sorriso bobo pendurado no rosto, enquanto meu avô olhava tudo aquilo segurando o riso. Eles encheram a pança de pipoca, quindins e outras iguarias preparadas para o orixá e, à despeito dos boatos que correm por aí − quando eu era pequena, minha mãe dizia que tocar em macumba fazia o dedo da gente secar e cair − a família polonesa perseverou forte e feliz aqui no Brasil, e os netos daquele imigrante incauto devem andar hoje por aí, em algum terreiro dessa nossa pátria gigantesca e multicultural. Digo isso eu, que sou filha de Iansã.
Leticia Wierzchowski é autora de Sal, primeiro romance nacional publicado pela Intrínseca, e assina uma coluna aqui no Blog.
Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Um de seus romances mais conhecidos é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Hahaha não consegui evitar o riso no final! É, fale o que quiser, brasileiro é sim muito hospitaleiro (mesmo sem querer, como foi o caso!)