Da desconfiança e do preconceito

A vida cotidiana no Brasil tem nos obrigado ao eterno exercício da desconfiança — e não estou falando das polêmicas facebookianas e palacinas.

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A vida cotidiana no Brasil tem nos obrigado ao eterno exercício da desconfiança — e não estou falando das polêmicas facebookianas e palacinas. Estamos tolhidos na nossa liberdade de ir e vir; vivemos trancafiados em casas com cerca elétrica e prédios com sistema antipânico; nossos carros segurados andam pelas ruas com o vidro fechado. Porém, mais do que tudo isso, estamos trancados em nós mesmos. É preciso desconfiar do outro constantemente, ser discreto e não falar com estranhos.

Dia desses, no entanto, presenciei uma cena triste — e digo triste além da tristeza disso tudo que expus acima. Foi num bom restaurante da cidade, num sábado ensolarado deste verão que resiste em partir. Sentada numa mesa à janela, eu olhava a calçada onde outras mesinhas se multiplicavam: gente colorida, alegre, confraternizando num dia bonito, comendo e bebendo sob os guarda-sóis. Havia duas moças conversando, e uma delas deixara sua bolsa sobre a mesa. Era uma bolsa grande, marrom. Elas riam, falavam. Nisso veio pela calçada um menino de uns oito anos vendendo balas, usando roupas puídas e labutando antes da hora, destino da maioria das crianças brasileiras. Ele ofereceu as balas de mesa em mesa; não sei se chegou a vender alguma. Quando parou em frente à mesa em questão, uma das moças recolheu ostensivamente sua bolsa, enfiando-a num nicho da cadeira. Fez isso tranquila e naturalmente, bem na frente do menino, sem ter ao menos a dignidade de dizer “não, obrigada, não quero balas”. Depois de alguns segundos de puro silêncio, o menino saiu, não sem perceber que, com seu afastamento, a bolsa marrom voltara ao seu lugar sobre a mesa.

Ok, meninos pobres vendendo coisas no meio de um almoço causam constrangimento. A gente sente pena, culpa e raiva do governo. Mas, então, que cada um guarde sua bolsa bem a salvo dos seus preconceitos e medos. Não é justo impingir a uma criança a pecha de provável ladrão, pois foi isso que eu e o menino vimos.

Fui assaltada uma única vez na vida, num sinal de trânsito paulistano. O ladrão, que veio caminhando pelo canteiro da avenida, era um cara bonito e bem-vestido, tanto que destoava dos pedestres que circulavam por ali. Se houve preconceito meu? Pode até ser; o cara não tinha a menor pinta de ladrão. Mas pelo menos fui eu a vítima desse preconceito. Agora, cá entre nós, vamos deixar as crianças fora disso.

Respostas de 2

  1. Marcela Davino de Azevedo disse:

    E sem surpresa, ao final deste ótimo texto, nenhum comentário… Calados, porque recolhem suas bolsas e carteiras, tal como a moça daquela mesa.

  2. That adeessrds several of my concerns actually.

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