Artigos

Babel: Como traduzir uma fantasia sobre tradução?

28 / maio / 2024

Confira o relato da tradutora Marina Vargas | Novo livro da autora de A Guerra da Papoula é uma narrativa avassaladora sobre a magia da linguagem

Por Marina Vargas*

O processo de tradução

Se eu queria traduzir uma obra dark academia sobre… tradução? Nossa, como eu queria! Traduzir um livro que tem como um dos temas principais a própria tradução é o sonho de quem sempre soube que queria trabalhar com as palavras. Foi desde muito cedo, decifrando as letras nas manchetes dos jornais, fazendo planos mirabolantes para as Bienais do Livro no Riocentro, encomendando exemplares pelo reembolso postal, reunindo uma biblioteca aleatória e lendo tudo que eu encontrava pela frente que soube que havia um destino ali. E o que esse destino, quem diria, acabou me trazendo foi muito mais do que eu esperava. Quando a Intrínseca me propôs traduzir Babel ou a necessidade de violência, eu tinha, coincidentemente, voltado para a universidade para estudar… tradução!

Babel, publicado pela Intrínseca em fevereiro de 2024

A tradução surgiu na minha vida como o avesso do bordado do qual Walter Benjamin, que também era tradutor (cof! cof!), fala em um dos textos de Rua de mão única: “(…) à medida que o papel abria caminho à agulha com um leve estalo, eu cedia à tentação de me apaixonar pelo reticulado do avesso, que ia ficando cada vez mais confuso a cada ponto dado, com o qual, na frente, me aproximava da meta.” (Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho.) Eu era editora da Civilização Brasileira e, editando os textos traduzidos, ia vendo “os fios emaranhados do avesso” que aos poucos davam forma ao texto final. Foi a fascinação por esse processo que fez com que me aventurasse na tradução e, mais tarde, desejasse compreendê-la melhor também do ponto de vista teórico.

Desde o século I a.C.(!) se teoriza sobre a tradução, e de lá até hoje muito se discutiu sobre esse incrível transitar entre línguas: fidelidade, invisibilidade, substância, efeitos, perdas e compensações. Texto de partida, texto de chegada, autor, leitor, editor… O que está no cerne dessa tentativa de verter toda uma cultura, uma tradição, uma visão de mundo? Para mim, é o mestre Umberto Eco (que traduziu, foi traduzido, refletiu e escreveu sobre tradução), no livro Quase a mesma coisa, quem chega mais perto de responder: uma negociação. Perde-se aqui, ganha-se adiante. Como o próprio título sugere, quase não é pouco, mas — eis o dilema de quem traduz — está longe de ser tudo.

As negociações

Durante o processo de tradução de Babel, como atestam os longos (por vezes emocionados e até hilários) diálogos que eu, a editora Suelen Lopes e o copidesque travamos nos comentários do Word, as negociações foram muitas! Por exemplo, o que fazer com babblers, termo usado para se referir aos estudantes de Babel, que é ao mesmo tempo uma referência ao nome Babel e ao significado de babbler, pessoa tagarela, um jogo praticamente impossível de reproduzir em português? (Vai lá ver o que a gente decidiu!) Como resolver a questão do apelido carinhoso que Ramy dá a Robin — Birdie (“passarinho”), porque robin é também o nome de um pássaro, o pisco ou pintarroxo —, uma vez que essa transposição não se dá de maneira efetiva no português?

A Oxford de Babel

O que fazer com os longos trechos em que os professores discutem a origem de diversas palavras se estão se referindo a palavras em inglês, cuja etimologia difere, por vezes radicalmente, das possíveis traduções em português? Como levar o leitor para a Oxford da primeira metade do século XIX sem encher o livro de notas de tradução desnecessárias? Aliás, se já existe, por vontade da autora, uma conversa aberta com o leitor por meio dessas notas, por que não abrir mais uma frestinha no texto e explicar alguns dos dilemas que enfrentei (e não consegui resolver) na tradução? Negociações, negociações… 

Como o próprio personagem principal bem diz: “O tradutor precisa ser tradutor, crítico literário e poeta ao mesmo tempo, tem que ler o original bem o suficiente para compreender todos os mecanismos subjacentes e para transmitir o significado com o máximo de precisão possível, em seguida reorganizar o significado traduzido em uma estrutura esteticamente agradável na língua de chegada que, em seu julgamento, corresponda ao original. O poeta corre livre pelas pradarias. O tradutor dança algemado.”

Conheça Babel ou a necessidade de violência

É em meio a reflexões como essa que Kuang vai nos contando a história de Robin, um menino que, em 1828, fica órfão durante uma epidemia de cólera em Cantão, na China, e acaba sendo levado para Londres pelo misterioso professor Lovell. Lá ele vai passar anos se dedicando ao estudo de diversos idiomas, como latim e grego antigo, e se preparando para um dia ingressar no prestigiado Real Instituto de Tradução da Universidade de Oxford, conhecido como Babel, uma referência à torre da história bíblica por meio da qual os homens tentaram realizar a utopia de uma língua única, que todos compreendessem. 

Personagens de Babel, de R.F. Kuang

A Babel de Kuang, no entanto, passa bem longe dessa utopia: ela guarda segredos inimagináveis, por vezes terríveis. No Instituto, Robin descobre que aprender a traduzir é também aprender a dominar a magia das barras de prata, que manifestam as nuances e os significados que se perdem na tradução — uma arte que proporcionou ao Império Britânico uma dominância sem precedentes. É também no Instituto que ele conhece Ramy, Victoire e Letty — os outros estudantes de tradução que ingressam no mesmo ano e que vão se tornar seus grandes amigos.

Além de discussões fascinantes sobre tradução, na Babel de Kuang, você, leitor, vai encontrar quase tudo: uma história que envolve amizade, segredos, uma obscura organização destinada a conter a expansão colonialista e planos de revolução em uma atmosfera de tensão crescente na qual se confrontam lealdade e traição, identidade e poder, conhecimento e opressão, amor e perdas. E, de vez em quando, lá estarei eu, numa notinha de rodapé, falando com você: Oi, aqui é a tradutora. Deixa eu te contar uma coisa…

*Marina Vargas trabalha com livros desde 2001. É formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e está terminando a graduação em Letras/Português-Inglês na PUC-Rio. Trabalhou na Zahar e no Grupo Editorial Record, onde foi editora do selo Civilização Brasileira até 2014. Desde então, atua como revisora e tradutora freelancer para diversas editoras em todo tipo de livro: infantis, YA, acadêmicos, romances… Já traduziu diversas obras para a Intrínseca, como a série No tempo dos feiticeiros, Pachinko e O apartamento de Paris.


Saiba mais sobre os livros

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *